quinta-feira, 2 de abril de 2015

Luís de Sttau Monteiro 2

Procuro com a mão o despertador que está a tocar há mais de meio minuto. Encontro-o entre um livro e o copo de água que me colocam todas as noites sobre a mesinha-de-cabeceira. Carrego num botão e o silêncio volta a entrar no meu quarto. Sei que já não posso readormecer. O meu despertador toca invariavelmente às oito da manhã, todos os dias, faça sol ou faça chuva.
É uma das invariáveis da minha vida, tão invariável como o amor da Fernanda, como os jantares de família nos dias santos, como o som do piano da vizinha aos domingos.
Não há nada a fazer. Atiro com a roupa ao chão e procuro, com o pé, o chinelo que deve estar algures ao lado da cama.
Lá fora a cidade começa a ser atacada pela luz, uma luz que não perdoa nada, nem a racha duma parede, nem uma rua mal varrida, nem as rugas nas caras das mulheres. As próprias sombras são atacadas mal saem das coisas e desfazem-se antes de chegar ao chão. Dentro duma hora as últimas sombras da cidade já estarão refugiadas debaixo das árvores da Avenida e atrás dos muros mais espessos dos bairros populares.
Começo o dia na casa de banho, em frente do espelho, fazendo a barba com uma "gillette" nova que me deu a inevitável Fernanda. 
Entorto a cara para a direita e para a esquerda em frente do espelho e observo, mais uma vez, que sou feio. Não há qualquer razão para que a Fernanda continue a gostar de mim. Por mais que tente, não consigo compreendê-la.

"Um Homem Não Chora", Luís de Sttau Monteiro

(Luís de Sttau Monteiro nasceu no dia 3 de Abril de 1926. Morreu em 1993.)

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