Vem o inverno e os montes pedregosos, as árvores despidas, a natureza inteira envolve-se numa grande nuvem húmida que tudo abafa e penetra. As coisas di-las-íeis recolhidas e cismáticas.
É um rolo misterioso e profundo que vem dum mar desconhecido. E a chuva começa, o ruído doce da chuva que faz sonhar em tantas coisas idas e tristes! Primeiro a terra embebe-se e incha. E, depois de cheia, a torrente jorra até polir as pedras: ara, põe raízes à mostra, arrasta na aluvião o húmus, as folhas secas das árvores, os cadáveres dos bichos, os detritos desagregados das rochas, que rola juntos, dispersa e reúne, atira, entre a baba da água para um destino ignoto.
Assim a vida. É um rio de lágrimas, de brados, de mistério. A onda turva põe as mais fundas raizes à mostra, a torrente leva consigo de roldão a desgraça e o riso; sem cessar carreia este terriço humano para uma praia, onde as mãos esquálidas dos que sofreram encontram enfim a mão que os ampara, onde os olhos dos pobres, que se fartaram de chorar, ficam atónitos diante da madrugada eterna, onde todo o sonho se converte em realidade...
"Os Pobres", Raul Brandão
(Raul Brandão nasceu no dia 12 de Março de 1867. Morreu em 1930.)
Sem comentários:
Enviar um comentário