O tio Manuel era irmão de Joaquim. Tinha oficina de curtidor na Rua dos Pelames, no Porto, e era muito rico, e viúvo sem filhos, com cinquenta anos, sujos, sim, mas bem conservados. Tinha passado a festa do Natal de 1822 em Guimarães e levara à sobrinha um grilhão de ouro da sua viúva dentro de uma rosca de pão-de-ló. Gostou muito de a ver entretida com o presépio do Menino Jesus, cheia de devotos carinhos, ora beijando-lhe os pés, ora incensando o recinto do religioso espectáculo, guardando em todos estes actos umas atitudes misteriosas e uns silêncios respeitosos e dignos das primitivas cristandades nos subterrâneos da Roma pagã. Acompanhou o tio Manuel a sobrinha à missa do galo e embirrou com o fidalgo do Toural, que lhe atirou confeitos a ela, e a ele dois rebuçados velhos à cara que pareciam de chumbo. Todavia, notou a austera gravidade de Teresa, que nunca voltou o rosto para ver donde lhe atiravam os confeitos: Ao sair da igreja do Mosteiro de Santa Clara, um rancho de fidalgos, com os seus lacaios armados de lanternas, formaram alas para iluminarem e acompanharem as damas que saíam. Teresa, para não ser vista, saiu pela porta travessa, a dizer ao tio:
- Vamos por aqui por causa desses homens.
- São bons brejeiros! - concordou ele, e acrescentou de si para consigo: - Juízo até ali!
Em casa disse ao irmão que Teresa era uma jóia, e contou o caso dos confettis com a veemência de quem repete o caso de Lucrécia. O mano Joaquim, a abrir e a fechar a boca com três cruzes, resmoneou:
- A rapariga tem pancada na mola.
"A Viúva do Enforcado", Camilo Castelo Branco
(Camilo Castelo Branco nasceu no dia 16 de Março de 1825. Morreu em 1890.)
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