Uma das primeiras grandes revelações da minha infância, ao
surpreender as coisas, foi verificar que me interrogava,
invariavelmente, assim: qual é o lado mais cómico disto? Os desfiles
militares, as cerimónias religiosas, os cumprimentos obsequiosos e
constrangedores, os adereços excessivos da autoridade, as exigências
rígidas da hierarquia, os compromissos artificiosos. E eu: qual é o lado
mais cómico disto? Daí a fazer esta pergunta interior em qualquer
situação dramática, foi um passo. A doença, a brutalidade, a estupidez, a
intolerância, a maldade pura, a alucinação despótica - até o leito de
sofrimento, o leito da morte. E eu: qual é o lado mais cómico disto?
Andava
nessa altura a rir-me muito com as caras burlescas do cinema, não sabia
que Shakespeare e Bergman existiam, ainda não tinha lido alguns livros
trágicos e patéticos - e se soubesse que devia ter a faculdade de me rir
de mim próprio, sabia-o sem o saber. Quando uma vez caí, a patinar no
passeio com botas cardadas, e parti o dente da frente, fiz a pergunta
calada e sacramental, enquanto as pessoas olhavam para mim: - Qual é o
lado mais cómico disto?
Quando a infância começou a ser perturbada
por desentendimentos mais amplos com o real, insisti na defesa da minha
alegria, do meu prazer de viver. E até na dor que retirava dos que amava
(dos meus avós, das minhas velhas tias, por exemplo), e até na morte,
que sempre me surpreendia, protegia-me com essa frase defensiva, essa
armadura de sol, de chuva e de subir a escada a quatro e quatro.
Creio
que os cómicos do cinema me compreendiam melhor que ninguém. Habitavam o
coração do desastre com a desenvoltura e a paciência evangélica dos
grandes missionários da naturalidade.
"Reduto Quase Final", Dinis Machado
(Dinis Machado nasceu no dia 21 de Março de 1930. Morreu em 2008.)
Sem comentários:
Enviar um comentário