Nunca dancei. Vi os outros dançarem, em terraços voltados para o mar, no
chão de areia de África ou do Brasil, em clandestinos infernos de bares
de marinheiros ou em inflamadas discotecas de praias turísticas, vi-os e
julguei-os felizes, esquecidos e voláteis, perdidos e enovelados numa
bola de fogo, mesmo se às vezes os pares se rompiam e ela vinha
sentar-se a chorar, e então eu pensava que ainda havia palavras que
podiam funcionar como carícias, que eu sabia dizê-las, palavras redondas
encostadas à face magoada e triste. Também dancei sem que os outros
soubessem que eu dançava, mas dancei fora da dança, porque dançava para
mostrar que também dançava, e lembrava-me disso em cada passo, e nunca
esquecia que era o meu corpo que dançava, e nunca soube dançar sobre o
esquecimento do corpo, nunca ninguém dançou sobre o meu corpo como se
fosse a areia da praia ou um terraço voltado para o mar, nunca ninguém
que eu sentisse os dois esquecidos de mim.
Pouco a pouco, aprendi a olhar a arte da dança, e passei noites inteiras
no deslumbramento de os ver, sem palavras úteis que me explicassem o que
ali se passava à minha frente. Era apenas ficar sentado com os olhos
colados ao vidro de um mundo outro em que os corpos se multiplicavam
como estrelas no momento preciso em que ainda se não tinham tocado, mas
já começavam a precipitar-se uns para dentro dos outros. Eles dançavam,
esplêndidos, gloriosos, e eu ao vê-los sei que nunca dancei."Tudo o Que Não Escrevi", Eduardo Prado Coelho
(Eduardo Prado Coelho nasceu no dia 29 de Março de 1944. Morreu em 2007.)
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