A tua boa acção diária... E respondo ao Justino Soares que se vá embora descansado, que estou quase a acabar a crónica sobre política internacional (uns pozinhos do Monde, outros do Nouvel Observateur, deste, daquele), mas puxando a coisa bem mais para a esquerda, por descargo de consciência, aliás inútil, dado que a censura se encarregará de tosquiar esse "para a esquerda", um "para a esquerda" difícil, de resto: o conflito sino-soviético, como poderíamos imaginar possível, há vinte anos, um conflito assim entre irmãos - mas que mundo é este em que somos obrigados a julgar as coisas nas bases postas pelos outros e não por nós, a aceitar dilemas que talvez sejam simplesmente problemas mal postos? Pois, que não se preocupe, eu trato da necrologia. "Pá - tinha-me ele dito -, combinei um encontro com uma gaja bestial e já estou atrasado..." Sim, a minha boa acção diária para que no exame de consciência, que aliás não farei logo à noite (falta-me o tempo!), possa sentir-me de bem comigo próprio, possa dizer-me que não sou um puro egoísta - muito antes pelo contrário, sou capaz de sacrifícios (quais?) pelos outros: adio, neste caso, por quinze minutos (e quinze minutos, a brincar a brincar, são um nonagésimo sexto do dia), a minha saída deste antro detestado - mas como aproveitaria eu esses quinze minutos se não tenho como tu, Justino Soares, uma gaja bestial à minha espera (que nem estará à tua espera, pois acabará certamente por chegar ainda mais atrasada do que tu)? E, ao mesmo tempo que nas paredes brancas das casas do outro lado da rua a luz do Sol me obriga a desviar os olhos da janela, pergunto-me se tu, mulher que vais chegar atrasada, saberás que ele te trata por gaja, pergunto-me como te falará ele, como falarás tu - se nesse encontro não porão vocês um pouco de sonho, de palavras grandiloquentemente romanescas, a ilusão de que estão a viver um momento único, jamais vivido sobre a Terra, inesquecível, um momento que irá prolongar-se por muitos anos, que fará do mundo, de todas as coisas, uma doçura verde de erva molhada (sim, uma doçura verde de erva molhada) ou se terão somente a lúcida consciência de colherem da vida o resíduo mais imediato e provisório - resíduo sem memória futura, tão identificado com o presente que até já passou.
"O Arquimortes", Augusto Abelaira
(Augusto Abelaira nasceu no dia 18 de Março de 1926. Morreu em 2003.)
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