sexta-feira, 4 de março de 2016

Eugénio de Castro 2

Um cacto no pólo

Julguei que se tinha levantado um obelisco místico no meio da praça; e que o obelisco dava uma sombra azul; e que tinham acendido um fogão no quarto húmido; e que tinham dado alta ao doente.

Julguei que nascia o sol à meia-noite; e que uma boca muda me falava; e que esfolhavam lírios sobre o meu peito; e que havia uma novena ao pé do Jardim de Aclimação.

Uma boca muda me falou; mas o obelisco, de ténue que era, não deu sombra; e o fogão não aqueceu o quarto húmido; e o doente teve uma recaída.

E o clown entrou, folião, na Igreja; e fez jogos malabares com os cibórios e os turíbulos; e tornou a nevar; e, após os brandos etésios, soprou o mistral forte.

E na alcova branca entrou a Dama expulsa, cujo corpo é de âmbar e cera e todo rescendente de um matrimónio aromal de mirra e valeriana, a Dama dos flexuosos e vertiginosos dedos rosados.

E seus cabelos de czarina eram claros como a estopa e finos como as teias de aranha; e seu ventre alvo, de estéril, era todo azul, todo azul de tatuagens.

E a Educanda fugiu do recolhimento; e com a Dama expulsa passei a noite em branco; e a noite foi toda de escarlate.

E no dia seguinte, em vez de sacros livros, que de ordinário me deleitam, li Schopenhauer, e achei Artur Schopenhauer setecentas vezes superior a todos os Doutores da Igreja.
 
"Horas", Eugénio de Castro 

(Eugénio de Castro nasceu no dia 4 de Março de 1869. Morreu em 1944.)

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