quarta-feira, 8 de junho de 2016

José Gomes Ferreira 4

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.


Quando nos sentíssemos cansados,
fartos do mesmo sol a fingir de novo todas as manhãs,
convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer:
"Fulano de tal comunica a V. Ex.ª que vai transformar-se
em nuvem hoje às 9 horas. Traje de passeio".

E então, solenemente, com passos de reter tempo,
fatos escuros, olhos de lua de cerimónia,
viríamos todos assistir à despedida.
Apertos de mãos quentes.
Ternura de calafrio.

"Adeus! Adeus!"

E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos...)
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão subtil... tão pólen...
como aquela nuvem além - vêem?


Nesta tarde de Outono ainda tocada por um vento de lábios azuis...

José Gomes Ferreira

(José Gomes Ferreira nasceu no dia 9 de Junho de 1900. Morreu em 1985.)

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