Ao amanhecer de um dia nevoeiro, a paisagem perdera o seu contorno exato e regular. As linhas definitivas dos objetos se confundiam, as montanhas enterravam as cabeças nas nuvens, a cabeleira das árvores fumegava, o rio sem horizonte, sem limite, como uma grande pasta cinzenta, se ligava ao céu baixo e denso. O desenho se apagara, a bruma mascarava os perfis das coisas e o colorido surgia com a sombra numa sublime desforra. Por toda a parte manchas esplêndidas se ostentavam. E sobre a campina esverdeada, vaporosa, uma dessas manchas, ligeiramente azulada, movia-se, arqueava-se, abaixava-se, erguia-se e se ia lentamente dissipando. O sol não tardou a vir, e a natureza se sacudiu, a névoa fugiu, o céu se espanou e se dilatou em maravilhosa limpidez. A mancha móvel sobre a planície se definiu no perfil de um pobre cavalo que passeava na verdura os seus olhos de velhice e fadiga, tristes e longos. De passada, com os túmidos e negros beiços, afagava a erva, triturando-a com fastio e desânimo, enquanto a sua atenção de cavalo experimentado estava voltada para a cabana, a cuja porta os seus donos, os novos colonos magiares, o miravam com interesse. A neblina leve, veloz, vinha distraí-lo daquela postura de curiosidade humilde, e acariciava num frio elétrico o seu pelo ralo e falhado. Estremecia num gozo manso, e estendendo o focinho, arregaçando os beiços, sensual e grato, beijava o ar. Não mais encontrava a névoa, que fugira para os montes, levada pela brisa, como se fosse o imperceptível véu que envolvesse alguma deusa errante e retardada. Um rio de sol, porém, descera a brincar-lhe nos olhos e incendiava-lhe a pupila. Meiguices da natureza.
"Canaã", Graça Aranha
(Graça Aranha nasceu no dia 21 de Junho de 1868. Morreu em 1931.)
Sem comentários:
Enviar um comentário