A bola, como uma mulher
O futebol pode ser uma coisa muito bonita. Se o pequeno astro argentino Lionel Messi
estiver em campo, então é de certeza. Lembro-me de um jogo da Liga dos Campeões, há quatro anos, em que o craque do
Barcelona brilhou como nunca: marcou cinco em sete, bateu recordes, mas
não é a quantidade que aqui me interessa - é a qualidade. A qualidade de
um jogador que descansa mais do que corre, e que não corre, desliza.
Que não se esfarrapa, mas pensa. E que pensa e cria como respira. A
sofreguidão é uma cena que não lhe assiste. Os seus golos são obras de
arte, actos de amor.
Messi conhece como ninguém, a cada momento, o
ponto G da jogada que ainda nem lhe chegou aos pés. Ele adivinha o
sítio onde a bola o vai procurar. Recebe-a com um beijo, oferece-lhe
flores, acaricia-a, leva-a a passear, e ela gosta, retribui os carinhos,
abraça-se-lhe à chuteira num abraço só desfeito no exacto momento do
remate. Digo mal. Mas qual remate? Messi não chuta, passa a bola à
baliza e é golo. O pequeno Messi é um cavalheiro, um amante delicado e
atencioso: trata a bola como ela merece. A bola, como uma mulher.
O Grosso da Coluna e o Maçico Central
A
diferença entre o Grosso da Coluna e o Maciço Central pode
resumir-se-se assim: o primeiro é corredor de bicicletas e o segundo
joga no eixo da defesa, como agora se diz. E o que têm em comum?
Fisicamente falando, pertencem ambos à família dos Armários.
O Caralho é o número 10 (ou Cada um tem as epifanias que merece)
Uma
vez eu fui à bola e tive uma revelação que até hoje. Uma epifania, como agora se diz para evitar confusões com a velha química fotográfica.
Eram outros tempos, sobras de vacas gordas que ainda me davam para subir
até à prazenteira companhia e insubstituível comida do Sr. Vilaça, no Conselheiro,
em Paredes de Coura. Mas o jogo: no campo à borda da estrada que desce para Ponte de Lima, era um
Castanheira-Paçô, prélio que eu prognosticara sem história, coisa para
zero-zero ou menos, mas estava esfericamente enganado. Foram três secos
em dia de chuva, frio e nevoeiro. Nevoeiríssimo. Nem um palmo eu via à
frente do nariz, literalmente, e peço que, por favor, não se
escandalizem com tanta literalidade: com uma mão a segurar o chuço e a
outra enfiada no bolso das calças, a gozar o quentinho da ferramenta,
não tinha um terceiro palmo à mão, só mesmo se pedisse um palmo
emprestado ao parceiro do lado, e eu não estava para aí virado.
Portanto, não via um palmo à frente do nariz, que fique assente. O
nevoeiro, nevoeiríssimo, era tanto que às vezes, junto à outra baliza,
eu seja ceguinho se não era capaz de jurar que os atletas de ambas as equipas estavam a jogar
em braille. Ao árbitro já não chegava essa coisa nova que é a sinalética,
apitava de megafone, marcava faltas por sms, e fosse o que Deus
quisesse. E eu sem saber se o bloco era baixo e se a pressão era alta,
matérias que me interessam sobremaneira. E o último terço do terreno,
onde estaria realmente o último terço do terreno?
Lá no
alto da serra, o tecto de nevoeiro era tão denso, quase sólido, que
aquilo já não era um campo de futebol, parecia mais um pavilhão
gimnodesportivo, e eu ali dentro, compactado, com falta de ar, estou
aqui estou a ligar para o 112. E cá está: como, ainda por cima, éramos
apenas 19 pessoas e quatro gê-nê-erres a ouver o jogo, não se via mas
ouvia-se tudo o que se passava dentro das quatro linhas. Foi assim que
de repente, entra o primeiro golo, entra o segundo, as minhas enregeladas
porém atentíssimas orelhas começaram a captar: "Vai, Caralho!", "Sobe,
Caralho!", "Entra, Caralho!", "Sai, Caralho!", "Dá-lhe, Caralho!",
"Força, Caralho!"... E eu cá para os meus botões, mais admirado era
impossível: - Ai que caralho, queres tu ver que o Caralho joga
no Castanheira? Mas quem caralho será?
Estava,
é preciso que se diga, admirado mas também intrigado, consumição a dobrar. A minha sorte foi que,
aproveitando um bocanho, lá acabou por entrar o terceiro dos da casa,
marcado pelo 10, imediatamente abraçado pela sua equipa em peso, a
aberta deu para ver. "Golo, Caralho!", "Boa, Caralho!", "É assim mesmo,
Caralho!", "És o maior, Caralho!", gritavam-lhe os eufóricos colegas,
pendurando-se-lhe no pescoço. Com o árbitro a dizer que eram que horas e
a festa a terminar, como manda a tradição, com calduços e palmadinhas
no rabo, embora toda a gente saiba que não há gays no futebol, eu
percebi finalmente: o número 10 é que é o Caralho.
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