segunda-feira, 20 de junho de 2016

O meu Europeu é melhor que o teu 5

O desporto é bom é com gajas. Gajas boas...
Não sei quem começou, mas foi no estrangeiro. O desporto na televisão passou a ser sobretudo bancadas. Antes, durante e depois. O entretanto do campo é agora apenas uma obrigação publicitária, um bocejo de todo o tamanho. As câmaras procuram é gajas de arrebita. Gajas boas, finas e bonitas, se possível com três quartos de mamas à mostra, e eu gosto. Mas... se de repente as gajas boas, finas e bonitas metem o dedo no nariz e vão comer o carranho de há três dias, a câmara foge a sete pés que não tem, porque gajas boas, finas e bonitas não comem carranhos. São as ordens. Comem pistácios homologados pela FIFA e pela UEFA.
Pago um dinheirão pela minha televisão. Rima e é verdade. Não vejo nada, mas gosto de passar os olhos por tudo. E lá estão as gajas boas, finas e bonitas. Nas bancadas. Nas bancadas do ténis que é bem, do basquetebol americano, do voleibol português com side-out, do hóquei em patins de trazer por casa, do andebol, evidentemente do futebol, do pingue-pongue, do hipismo, do motociclismo, da Fórmula 1, da Fórmula 2, da Fórmula 3, da fórmula mágica e das fórmulas todas. Também do bólingue e dos dardos, simpáticas modalidades que, para ser correcto, ainda andam à procura de gajas boas, finas e bonitas. Nas bancadas.


Nelo Barros
Tive a sorte de conhecer Nelo Barros. Manuel Coelho de Barros (1917-2007) foi um grande treinador de futebol e um mestre de treinadores de futebol que nunca fez primeiras páginas de jornais porque sempre se recusou a deixar o emprego no escritório da que era então a maior fábrica de Fafe, e umas das maiores do País, a troco de trabalho a tempo inteiro numa equipa da 1.ª divisão. O Nelinho era assim.
Pessoa excelentíssima, homem distinto, culto, Nelo Barros era reconhecidamente um catedrático da táctica, sabia muito de bola e dava gosto ouvi-lo falar de futebol. Ele entusiasmava-se e entusiasmava. O futebol de Nelo Barros tinha pessoas e histórias dentro. O futebol contado por Nelo Barros era simples, percebia-se à primeira, batia certo, era lindo.
Uma noite, no velho salão dos Bombeiros, o treinador encantou uma plateia à pinha que o foi ouvir falar de desporto e de futebol, de jogadores e de jogos, de treinadores e de tácticas, como nunca se tinha ouvido falar por aquelas bandas. O Nelinho falou como de costume, sem tabus, sem truques, sem arcas encouradas, sem grandes teorias, sem peneiras. Até eu, que era um rapazola, entendi tudo. E fiquei a gostar ainda mais de futebol.
Perguntaram-lhe o que é que era preciso para se ser um bom treinador. Nelo Barros respondeu assim, que esta cá me ficou: "Não há bons treinadores. Os jogadores é que fazem os bons treinadores". E depois desenvolveu, mas nem era preciso.
Eu gostava tanto de ouvir Nelo Barros, que ia assistir a todos os treinos, que eram sempre ao fim da tarde, por causa do tal emprego do treinador na fábrica. Uma vez, o jogo em preparação era contra o Riopele. E digo contra de propósito, porque aquele era um tempo de rivalidades à moda antiga, dentro e fora do campo, acabando quase sempre tudo à trolha.
Mas, voltando ao treino, o Nelinho reuniu os jogadores à sua volta e deu a táctica. E eu por perto, de radar ligado. Fiquei deslumbrado: eram indicações precisas para cada um dos jogadores, para o funcionamento da defesa, para o desempenho do meio-campo, para o trabalho dos avançados, para as movimentações da equipa como um todo, até o Berto Magalhães (um suplente muito fraquinho, mas com um pulmão se faz favor) ia jogar como médio vadio para secar os criativos riopelenses. Tudo encaixava, tudo fazia sentido. E tudo dito com uma convicção, que no domingo só podia dar certo.
Mas não deu. Do outro lado estava uma equipa poderosíssima (se a memória não me atraiçoa, lá jogariam, por essa altura, o Piruta, o Vital, o Barros, o Albano, o João, o Luís Pereira), treinada por outro que a sabia toda: Ferreirinha. Saímos de Pousada de Saramago vergados a uma pesada derrota, já não sei por quantos, mas eu não perdi a fé no Nelo Barros. Pelo contrário. Na humilhação da goleada, aprendi a beleza original do futebol, tal como ele o ensinava: onze contra onze e uma bola que é redonda. O resto é treta.

Hoje, uma nova raça de colunistas, comentadores, ex-treinadores-comentadores e ex-comentadores-treinadores quer fazer-nos acreditar que o futebol é praticamente uma ciência oculta, só percebida por uns poucos predestinados que, modéstia à parte, são eles próprios. E inventam palavras e expressões para complicar o que é simples. E já não há bola nem futebol. Eles, que sabem inglês, "inventaram" o jogo.
Aqui atrasado, Vítor Pereira, então treinador do FC Porto, cansado de que lhe chamassem mosca-morta e de que pusessem em causa as suas capacidades, saiu da casca e disse: "Conheço o jogo profundamente, conheço os detalhes do jogo, conheço os pormenores, discuto os pormenores seja com quem for, tanto em termos de operacionalização e planificação do treino como de leitura do próprio jogo". Pois, parabéns à prima.
E depois apareceu Jorge Jesus a dizer que "os treinadores portugueses são os melhores do mercado". Que "estão à frente em termos de metodologia" e que "são os melhores do mundo". Dando o desconto que se impõe, devido ao conhecido umbiguismo de que padece o actual treinador do Sporting, percebemos logo que o que ele queria realmente dizer era "eu sou o melhor do mundo". Mas, ainda assim, parece-me que subsiste aqui uma pontinha de exagero.

Por estas e por outras, que saudades eu tenho de ouvir o Nelinho a falar de bola. De bola simplesmente.

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