O desporto é bom é com gajas. Gajas boas...
Não sei quem começou, mas foi no estrangeiro. O desporto na televisão passou a ser sobretudo bancadas.
Antes, durante e depois. O entretanto do campo é agora apenas uma
obrigação publicitária, um bocejo de todo o tamanho. As câmaras
procuram é gajas de arrebita. Gajas boas, finas e bonitas, se possível com três quartos de mamas à mostra, e eu gosto. Mas... se de
repente as gajas boas, finas e bonitas metem o dedo no nariz e vão
comer o carranho de há três dias, a câmara foge a sete pés que não tem,
porque gajas boas, finas e bonitas não comem carranhos. São as ordens.
Comem pistácios homologados pela FIFA e pela UEFA.
Pago
um dinheirão pela minha televisão. Rima e é verdade. Não vejo nada,
mas gosto de passar os olhos por tudo. E lá estão as gajas boas, finas e
bonitas. Nas bancadas. Nas bancadas do ténis que é bem, do basquetebol americano, do voleibol português com side-out, do hóquei em patins de
trazer por casa, do andebol, evidentemente do futebol, do pingue-pongue, do hipismo, do
motociclismo, da Fórmula 1, da Fórmula 2, da Fórmula 3, da fórmula mágica e das fórmulas todas. Também do bólingue e dos dardos,
simpáticas modalidades que, para ser correcto, ainda andam à procura de
gajas boas, finas e bonitas. Nas bancadas.
Nelo Barros
Tive
a sorte de conhecer Nelo Barros. Manuel Coelho de Barros (1917-2007)
foi um grande treinador de futebol e um mestre de treinadores de futebol
que nunca fez primeiras páginas de jornais porque sempre se recusou a
deixar o emprego no escritório da que era então a maior fábrica de Fafe,
e umas das maiores do País, a troco de trabalho a tempo inteiro numa
equipa da 1.ª divisão. O Nelinho era assim.
Pessoa excelentíssima, homem distinto,
culto, Nelo Barros era reconhecidamente um catedrático da táctica, sabia
muito de bola e dava gosto ouvi-lo falar de futebol. Ele
entusiasmava-se e entusiasmava. O futebol de Nelo Barros tinha pessoas e
histórias dentro. O futebol contado por Nelo Barros era simples,
percebia-se à primeira, batia certo, era lindo.
Uma noite, no
velho salão dos Bombeiros, o treinador encantou uma plateia à pinha que o
foi ouvir falar de desporto e de futebol, de jogadores e de jogos, de
treinadores e de tácticas, como nunca se tinha ouvido falar por aquelas
bandas. O Nelinho falou como de costume, sem tabus, sem truques, sem
arcas encouradas, sem grandes teorias, sem peneiras. Até eu, que era um
rapazola, entendi tudo. E fiquei a gostar ainda mais de futebol.
Perguntaram-lhe
o que é que era preciso para se ser um bom treinador. Nelo Barros
respondeu assim, que esta cá me ficou: "Não há bons treinadores. Os
jogadores é que fazem os bons treinadores". E depois desenvolveu, mas
nem era preciso.
Eu gostava tanto de ouvir Nelo Barros, que ia
assistir a todos os treinos, que eram sempre ao fim da tarde, por causa
do tal emprego do treinador na fábrica. Uma vez, o jogo em preparação
era contra o Riopele. E digo contra de propósito, porque aquele era um
tempo de rivalidades à moda antiga, dentro e fora do campo, acabando
quase sempre tudo à trolha.
Mas, voltando ao treino, o Nelinho
reuniu os jogadores à sua volta e deu a táctica. E eu por perto, de
radar ligado. Fiquei deslumbrado: eram indicações precisas para cada um
dos jogadores, para o funcionamento da defesa, para o desempenho do
meio-campo, para o trabalho dos avançados, para as movimentações da
equipa como um todo, até o Berto Magalhães (um suplente muito fraquinho,
mas com um pulmão se faz favor) ia jogar como médio vadio para secar os
criativos riopelenses. Tudo encaixava, tudo fazia sentido. E tudo dito
com uma convicção, que no domingo só podia dar certo.
Mas não
deu. Do outro lado estava uma equipa poderosíssima (se a memória não me
atraiçoa, lá jogariam, por essa altura, o Piruta, o Vital, o Barros, o
Albano, o João, o Luís Pereira), treinada por outro que a sabia toda:
Ferreirinha. Saímos de Pousada de Saramago vergados a uma pesada
derrota, já não sei por quantos, mas eu não perdi a fé no Nelo Barros.
Pelo contrário. Na humilhação da goleada, aprendi a beleza original do
futebol, tal como ele o ensinava: onze contra onze e uma bola que é
redonda. O resto é treta.
Hoje, uma nova raça de
colunistas, comentadores, ex-treinadores-comentadores e ex-comentadores-treinadores quer fazer-nos acreditar que o
futebol é praticamente uma ciência oculta, só percebida por uns poucos
predestinados que, modéstia à parte, são eles próprios. E inventam
palavras e expressões para complicar o que é simples. E já não há bola
nem futebol. Eles, que sabem inglês, "inventaram" o jogo.
Aqui atrasado, Vítor Pereira, então treinador do FC Porto, cansado de que lhe chamassem
mosca-morta e de que pusessem em causa as suas capacidades, saiu da casca e
disse: "Conheço o jogo profundamente, conheço os detalhes do jogo,
conheço os pormenores, discuto os pormenores seja com quem for, tanto em
termos de operacionalização e planificação do treino como de leitura do
próprio jogo". Pois, parabéns à prima.
E depois apareceu Jorge
Jesus a dizer que "os treinadores portugueses são os melhores do
mercado". Que "estão à frente em termos de metodologia" e que "são os
melhores do mundo". Dando o desconto que se impõe, devido ao conhecido
umbiguismo de que padece o actual treinador do Sporting, percebemos logo que o
que ele queria realmente dizer era "eu sou o melhor do mundo". Mas,
ainda assim, parece-me que subsiste aqui uma pontinha de exagero.
Por estas e por outras, que saudades eu tenho de ouvir o Nelinho a falar de bola. De bola simplesmente.
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