O azar da gaivota é não ter nascido lince (ou lagarto de água, vá lá)
"As câmaras do Porto, Matosinhos e Gaia colocaram em curso medidas para travar a proliferação de gaivotas naquelas cidades, com destaque para a proibição de alimentar as aves, colocação de pinos em edifícios e falcões no rio Douro", contava-me a agência Lusa num domingo de Páscoa, rapidamente copiada urbi et orbi pelos jornais de redacções vazias.
Duas das medidas a aplicar pelo Porto - que, entre Gaia e Matosinhos, é sempre o paradigma - são "a georreferenciação de pedidos de intervenção relacionados com gaivotas para estabelecer um plano de controlo do sucesso das medidas preventivas e a realização de acções de sensibilização quando se identificam situações irregulares de alimentação dos animais com entrega de brochuras". Não percebo o que este palavreado quer dizer, mas gosto muito da "georreferenciação", gosto sobretudo de "brochuras" e... cheira-me a Eichmann.
A Protectora terá decerto uma salomónica palavra a dizer sobre o assunto. E a inefável Quercus também. Talvez: devemos amar e respeitar os animais; se forem muitos (e mesmo animais) é que não. Que se lixem os garranos de Paredes de Coura, salvemos os gatos lambe-cricas e os cães zicos, choremos os simbas, acorrentemo-nos à porta do Coliseu pelos lagartos de água. Ou então paguem! Orwell já tinha avisado: todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros.
Como os meus caros três leitores sabem, eu tenho duas gaivotas. Era uma mas agora são duas, tal qual os amores do Marco Paulo eram dois.
Um destes dias a minha mulher põe-me fora de casa por causa das gaivotas, que me cagam generosamente a varanda e enxovalham a roupa a secar. Porque a verdade é esta: apesar de cagonas, eu quero-as; mas a minha mulher enxota-as. Serão ciúmes? É preciso que se note que as minhas são as duas mais belas gaivotas de Matosinhos. E eu, por mim, ficava com elas...
Anda um melro na minha rua
A minha rua adoptiva, em Matosinhos-sur-Mer, é território de gatos e gaivotas. De umas pombas, vá lá, de uns pardejos lingrinhas e de uns cães cagões e felizmente sem asas. Mas sobretudo, e historicamente, a minha rua é território de gatos e gaivotas, que vêm ao cheiro da comida que a minha vizinha lhes manda da varanda, besuntando de espinhas, patas de frango e nojo a estrada e o passeio, mesmo por baixo do meu nariz. A minha vizinha é que chamou as gaivotas, mas agora enxota-as a baldes de água fria, porque, não sei se mudou de religião, só quer conversa com os gatos.
Ora bem: há quase trinta anos que moro na minha rua e foram precisos quase trinta anos para que me aparecesse na rua um melro. Sim, um melro, efectivamente, e apresenta-se todas as manhãs. Melro cantor que dá gosto, e lambão benza-o Deus, também vai à marmita dos gatos, um destes dias desaparece corrido a encharcado pela minha vizinha, se não for coisa pior.
E eu, perante isto? Eu gostei muito que o melro tivesse dado com a minha rua e com a frente da minha casa. Grande melro! É porreiro porque, assim, já somos dois.
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