Para ser bom, o futebol deve ser visto na Antena 1
Comecei a ver o útimo Sporting-Benfica na cozinha, ouvindo o relato na rádio Antena 1. Estava a ser um derby
de arromba, bola cá, bola lá, quase-golos uns atrás dos outros, os
relatadores esganiçados com tanta emoção, faltava-lhes o ar, que
jogatana, que jogatana! Fui a correr para a sala e liguei a televisão,
para ver com os meus próprios olhos: o jogo era fraquinho, não havia
dois passes seguidos certos, os do Benfica entregavam a bola aos do
Sporting e os do Sporting, porventura por civilidade anfitriã,
entregavam a bola aos do Benfica, política de boa vizinhança, ao
contrário do que nos querem fazer crer. Entre estas cortesias a meio
campo, e sempre e ainda no dito miolo do terreno, sarrafava-se a bom
sarrafar, mas dentro do protocolo estabelecido. Que merda! Voltei,
desiludido, para a cozinha, liguei outra vez o rádio: o prélio tornou a
ser uma categoria, um frémito, um frenesim, só não era golo porque não
calhava. Eram defesas impossíveis, eram perdidas inacreditáveis, só se
jogava nas áreas. Fiquei-me portanto pelos 96.7, que até podia ter sido o
resultado final, tantas as oportunidades radiofónicas, e regalei-me.
Que jogaço, que jogaço! Esqueçam a televisão por cabo, que nos custa os
olhos da cara e só nos dá espectáculos deprimentes. O futebol, para ser
bom, deve ser visto na rádio Antena 1. É mentira, mas sabe bem.
Eu
sou pela Antena 1 desde pequenino, ainda a Antena 1 se chamava Emissora
Nacional e dava os resultados da 3.ª divisão e dos distritais já pela
noite dentro e era uma comoção tremenda ouvir dizer Fafe, Associação
Desportiva de Fafe, no Philips
da mesinha de cabeceira dos meus pais. Ficávamos ali todos à espera, a
família, como se estivéssemos a rezar o terço mas de boca calada,
angustiados e alerta, porque aquilo era dito uma só vez, como no "Alô,
Alô", e com a rapidez do "não dispensa a consulta do prospecto". Vamos
supor: o jogo do Fafe tinha sido em Arcos de Valdevez, que naquela
altura era muito longe e não havia telemóveis (eu sei que é difícil de
acreditar); se não fosse o rádio, só saberíamos o resultado a altas
horas, se tivéssemos vagar para isso, quando a excursão regressasse ao
Largo, e não era certo. O resultado. Porque o vinho também é bom, mas às
vezes atrapalhava as contas...
Gosto muito de todavias
Na
rádio, ouvi aqui atrasado uma pequena entrevista telefónica feita ao presidente
de um clube de futebol da primeira divisão. Claro que o entrevistado
não era nenhum dos três cabeçudos - esses não têm telefone (por causa da
polícia), só dão "grandes entrevistas" nas televisões mais ou menos
nacionais, em directo e exclusivo, ou, quando lhes apetece, mandam
recado pela rapaziada que mantêm nas redacções. E também não era nenhum
daqueles que querem ser cabeçudos quando forem grandes. Era somente o
presidente de um clube de futebol da primeira divisão.
E querem
saber? Gostei do que ouvi. Em apenas três ou quatro frases telegráficas,
num discurso simples e honesto, o presidente utilizou pelo menos duas
vezes a conjunção adversativa (ainda se chama assim?) todavia. Ora, eu
gosto muito de todavias. O facto de haver um presidente de um clube de
futebol da primeira divisão que respeita o trabalho dos jornalistas e
tem educação bastante para atender o telemóvel e permitir a gravação de
uma conversa, nos dias que correm e por si só, é para mim uma enorme
novidade, um motivo de justificado aplauso. E ainda por cima as todavias
falaram-me ao coração. Este presidente, digo já, passou a merecer a
minha mais sincera admiração.
Apesar de nenhuma das suas todavias estar devidamente contextualizada. Ou, como se diz agora à la française,
"mesmo que" nenhuma das suas todavias estivesse devidamente
contextualizada. Atirou-as ao calhas e quem quiser que fuja. Quero lá
saber: o homem é do futebol, não é gramático. Podia ter dito "picaretas"
e, isso sim, seria perigoso. Gosto muito de todavias, mas as todavias
não são tudo.
No tempo em que os animais falavam
Houve um tempo em que os presidentes dos maiores clubes de futebol falavam com os jornalistas e até convidavam os directores dos jornais para jantar. Todos eram tratados por igual e quem tivesse unhas que tocasse viola. Mas isso foi muito, muito antigamente, no tempo em que os animais falavam e não havia telemóveis. Depois, conta-se que os presidentes dos maiores clubes resolveram dividir os jornalistas em dois grandes grupos: os que levavam recados e os que levavam pancada - e deixaram de falar aos restantes. Mais tarde, os presidentes dos maiores clubes criaram as suas próprias televisões e passaram a ser "entrevistados" pelos seus próprios jornalistas. E agora, quando se dignam descer até ao ecrã das televisões generalistas, exigem tratamento de primeiro-ministro. São outros tempos.
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