O homem e o cão (e vice-versa)
Todas as manhãs o homem e o cão passeiam pela praia, naquela incerta linha de sobe e desce onde o mar enrola na areia e acaba Portugal. Par pândego, haviam de ver. O homem atira a bola de ténis e o cão, dez-réis de cão, rasteirinho e de raça que não sei, corre e salta, como uma bala, como uma mola, abocanhando-a, à bola, ainda no ar. Cão danado para a brincadeira. E habilidoso. "Bem, muito bem, espectáculo", diz o homem. E o cão regressa e larga a bola, e corre e salta à volta do homem, e ladra no verdadeiro ladrar que não morde, e abana o rabo, abana, que quer dizer "Obrigado, estou muito contente, mais, quero mais", e põe a língua de fora, que quer dizer "Ainda havemos de fazer isto ao contrário".
Um quadro enternecedor. Homem e cão, numa simbiose perfeita. O amigo dos animais e o melhor amigo do homem. Fossem eles polícias, o homem e o cão da bola de ténis, e estaríamos na presença de um binómio exemplar e definitivo. Decerto já viram nas notícias: binómio é um polícia e um cão que são colegas de trabalho. Já um carteiro e um cão são um perónio. Um perónio partido e o fundilho das calças esgaçado.
Todas as manhãs, portanto. Eu também por ali ando comigo pela trela e por isso é que sei o que estou a contar. Ontem desatei a rir com o raio do cão, que realmente tem jeito, parece do circo o lingrinhas. Entre uma acrobacia e outra, o cão tendia a enfiar-se na água, coisa de cão certamente, e o homem dizia "Sai daí, Rex, anda cá, Rex, já vais levar, Rex", nem de propósito Rex, eu seja cão se estou a inventar. O homem, que tomara nota do meu riso, resolveu pôr-me ao corrente, "É todos os dias a mesma merda, ele gosta, o caralho do cão mete-se no mar e eu depois é que tenho de lhe dar banho, secar e escovar, trabalho filho da puta, olha, lá vai ele outra vez, ó corno!, fode-me sempre..."
O cão resolveu apanhar a última, mas sem boca. Estava-se a armar para mim. Dominou a bola com o peito e, sem deixar cair, rematou em grande estilo e foi golo, palavra de honra que foi golo. Depois colocou o açaime ao homem e levou-o para casa.
Fábula em 152 caracteres (com espaços)
No tempo em que os animais falavam, o cão disse: ão, ão, ão. E o gato perguntou: és gago ou quê, ó chien de merde? O gato era, com efeito, poliglota.
Aramis
O Aramis andava à solta no Parque da Cidade. Também por lá andavam os espreitas do costume,
no miradouro do costume, equipados de perversão e binóculos mal
disfarçados, à cata de parzinhos no marmelanço. Mas do que eu quero
falar agora é do Aramis, um cão, bem bonito por sinal, de raça... grande,
que se afastou da alçada da dona e resolveu começar a rondar-me,
primeiro, a ladrar-me, depois, e a ameaçar abocanhar-me logo que lhe
apetecesse.
Eu fiz o que pude, dadas as circunstâncias: acagacei-me até mais não, a
bem dizer paralisei, ainda por cima passou-me pela cabeça que de repente
se desemboscassem por detrás das árvores o Porthos, o Athos e até o
d'Artagnan para ajudarem o Aramis e então é que eu me borrava todo. Uma
vergonha.
Portanto era nisto que nós estávamos: eu ali à rasquíssima, nem para a
frente nem para trás, e o estupor do cão (eu já disse que era bem bonito
por sinal?) com a dentuça cada vez mais arreganhada e mais próxima dos
meus ricos calcanhares. A dona bem chamava por ele, aflita, "Aramis,
anda cá, Aramis, anda cá", foi assim que eu fiquei a saber o nome do
animal, mas ele deixa-te estar que eu já te atendo.
"Desculpe, ele só quer brincar", aproximou-se de mim a dona, a ver se
lhe punha a mão e é o pões. "Mas eu não, minha senhora", saiu-me numa
vozinha de falsete e o coração quase que vinha atrás. Não consegui
articular, mas eu tinha sérias dúvidas de que o cão estivesse informado
de que só queria brincar.
Finalmente, num assomo de determinação e talvez desespero, a senhora
gritou, dura, autoritária, "Aramis, anda já aqui à dona!", conferindo
uma inflexão muito forte à palavra DONA. E o cão acordeirou, deixou-se
prender e levou um raspanete. Eu saí dali para fora logo que as minhas
pernas me deixaram, dando graças a Deus por na verdade haver cães que
conhecem o dono. A dona.
Agora, a minha ideia é esta: o Parque chega para todos, pessoas, cães e
até outros animais mais ou menos selvagens, como, por exemplo, as
bicicletas. Mas, tendo em vista uma convivência pacífica entre todas as
espécies, impõe-se que alguém ande pela trela. Ou eles ou nós. A mim tanto me faz.
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