Foto Hernâni Von Doellinger |
Um bobsleigh em segunda mão. No tempo dos sonhos eu tive um: comprar um bobsleigh em segunda mão, pegar na mulher, no filho e no futuro e mudarmo-nos os quatro para Santiago de Compostela, que era o estrangeiro que me estava mais à mão e nós gostávamos razoavelmente derivado às ruinhas, às tapas e às cañas e por a bem dizer nem ser estrangeiro. Melhor dito, gostamos muito. Mas hoje em dia: a Galiza anda tão à rasca como a gente, já não é oficialmente estrangeiro e saraiva por mais que saraive, ainda que em galego, não é neve nem embala. Ia fazer o quê com o bobsleigh na Praça do Obradoiro? Do Obradoiro, que nome extraordinário. Ainda por cima, os gandulos do lado de cá cortaram-me as vazas, entesaram-me até ao cutão. Desisti portanto do bobsleigh e tirei o passe do metro para a Senhora da Hora. Segundo julgo saber, na Senhora da Hora não neva há variados anos por uma questão de princípio. Que se segue: de bolsos vazios e sonhos roubados, fico olimpicamente em casa à espera do Verão de que não gosto. Sem bobsleigh, sem ruinhas, sem tapas e sem cañas. Uma seca que só visto.
Sou dado a invernos. Melhor que chova em Santiago. E que neve e que gele. Ou então nada disso, que ao ponto a que chegámos também não interessa, mas Santiago, sempre Santiago, mesmo sem bobsleigh e ainda que faça sol. Um dia destes lá iremos, eu, a mulher, o filho e o futuro - pobres e a pé, se Deus quiser, mas vamos. E tem de ser rápido, antes que uns certos e determinados bandalhos nos matem à fome em primeira mão.
A extraordinária roseira do coveiro Gusto Sardão. No quintal dos meus sogros há meia dúzia de roseiras razoavelmente produtivas e formiguentas. As flores vêm cá para casa, as formigas às vezes também. Cinco das seis roseiras do quintal dos meus sogros dão rosas vermelhas, mas daquele vermelho sanguíneo, belíssimo, rosas de livro e de filme, e cheiram a nada, como se fossem de supermercado, de plástico. A outra roseira, exemplar único, logo à entrada, dá umas rosas cor-das-mesmas, numa corzinha envergonhada e pálida, maricas, e porém manda-me cá para fora um perfume que inebria a léguas.
A roseira perfumosa, extraordinária, foi oferecida ao meu sogro, há muitos muitos anos, pelo Gusto Sardão, então coveiro titular do cemitério da então freguesia de Nevogilde, concelho do Porto. Para os registos: Augusto Francisco da Costa Almeida, enterrador de categoria e decilitrador condecorado, creio que uma coisa tem a ver com a outra. O Senhor Augusto - Senhor, para mim, com todo o respeito - tinha a voz mais bagaceira que Deus ao mundo botou, muito mais completa do que a do Bruno de Carvalho do Sporting, parece que ainda o estou a ouvir, o que é tecnicamente impossível. Com efeito, um dia o Senhor Augusto resolveu seguir os passos da clientela, faleceu ele próprio para não empecilhar o negócio, e actualmente confraterniza com os seus antigos ossos do ofício. Isto é: continua ao serviço, mas agora do lado de dentro. Não sei como nem quem lhe paga a féria...
Mas a roseira. A roseira extraordinária, delicada e odorosa, veio exactamente do cemitério, e isso é que eu ainda não tinha contado, e isso é que a torna realmente extraordinária. Do cemitério de Nevogilde, lugar do "santo" Menino Quim, de bruxedos ao portão e de outros espantos. As rosas, por exemplo: que não alcançam a exuberância cardiofálica e escandalosa dos antúrios de ficção do fotógrafo Jorge Tadeu, na telenovela brasileira Pedra Sobre Pedra, mas que, na sua modéstia, se oferecem abertas e feminis, reais, a quem as queira e saiba desfrutar.
Abençoado cemitério que semelhantes rosas dá. Abençoado. Um cemitério assim é uma provocação, um desafio lançado a quem não acredita em nada para além da óbito. Um cemitério como o do coveiro Gusto Sardão dá sentido e utilidade ao pós-morte, mesmo ao pós-vida dos incréus. Deve ser um conforto morrer sabendo que ao menos seremos estrume. E de rosas. Rosas subtis e perfumadas, rosas extraordinárias.
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