Amo-te sempre
Amo-te sempre 
 com um pouco de barco e de vento 
 com uma humildade de mar à tua volta 
 dentro do meu corpo; com o desespero 
 de ser tempo;
com um pouco de sol e uma fonte 
 adormecida na ternura.
Merecer este minuto de palavras habitando 
 o que há sem fim no teu retrato; 
 Este mesmo minuto em que chegam e partem navios 
 - nesta mesma cidade deste 
 minuto, desta língua, deste 
 romance diário dos teus olhos -
(e chegarão com armas? refugiados? trigo? 
 partirão com noivas? missionários? guerras? discursos?)
Merecer a densa beleza do teu corpo 
 que tem água e ternura, células, penumbra, 
 que dormiu no berço, dormiu na memória, 
 que teve soluços, febre, e absurdos desejos 
 maiores que os braços,
merecer os dias subindo das florestas - e vêm 
 banhar-se, lentos, nos teus olhos…
Merecer a Igreja, o ajoelhar das palavras, 
 entre estes cinemas visitando, em duas horas, a alma, 
 estes eléctricos parando atrás do infinito 
 para subirem os namorados, a viúva, o cobrador da luz, a costureira 
 entre estes homens que ganham dinheiro, sangue frio, ou vícios, ou medalhas 
 e estes telefones roubando a lealdade dos olhos…
Teus cabelos cheirarão ainda a infância 
 e a vento, depois de passarem por esta fome pública, 
 estes olhos com regras de trânsito, estes dias sujos, 
 estes lábios que já não ensinam o pomar 
 ou a fonte, nem têm gosto de leite e de aurora, 
 depois destes olhos cheios da pergunta de estarem vivos 
 em vão?
Merecer honradamente este poema, todos os poemas, 
 como quem parte, entre os dedos a brancura 
 quente de um pão!
"Esparsos", Vítor Matos e Sá
(Vítor Matos e Sá nasceu no dia 20 de Dezembro de 1926. Morreu em 1975.) 
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