Entre os tipos populares que pouco a pouco vão rolando a sepulturas ignoradas, deixando após si o rasto de uma vida sobremodo acidentada de peripécias quase sempre sombrias - rasto que só um ou outro escritor se compraz em procurar desde a cadeia ao degredo, do albergue ao cemitério -, avulta na tradição portuense um homem que por longo tempo aí foi o alvo das assuadas do rapazio e dos chascos dos frequentadores de botequim. Uns chamavam-lhe o José das Desgraças, outros simplesmente o Desgraça.
Parece dever inferir-se de tão lutuosa alcunha que a população da cidade lhe conhecia a biografia exuberante de lastimosos lances. Tal não há. Quando ele passava coxeando arrimado ao seu bordão, sobraçada a guitarra inseparável, de velho chapéu alto amassado, sobrecasaca abotoada, pendente a medalha de prata da guerra peninsular, anel de ouro na mão esquerda, na boca o enorme cigarro que ele próprio manipulava com pontas de charuto, seguido do cão fiel, que se chamava Junot, por motivos que mais tarde desvelaremos, o gentio das ruas ou sorria alvarmente da pitoresca pobreza do excêntrico mendigo ou rompia em apóstrofes de Ó Desgraça! Ó Desgraça! que ele parecia não ouvir ou desprezar em sua imperturbável serenidade.
"O Anel Misterioso (Cenas da Guerra Peninsular)", Alberto Pimentel
(Alberto Pimentel nasceu no dia 14 de Abril de 1849. Morreu em 1925.)
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