terça-feira, 18 de abril de 2017

Feridas de guerra

Foto do arquivo pessoal do ex-pára-quedista fafense ÁLVARO MAGALHÃES

Manuel Teixeira, 42 anos, suicidou-se. João Silva, 41 anos, aguarda julgamento por homicídio. José Rodrigues, 45 anos, faz terapia de grupo. António Pereira, 51 anos, vive obcecado pelas "injustiças" e já pensou matar ou matar-se - convive desde 1963 com psiquiatras e tranquilizantes. Manuel, João, José e António têm em comum a Guerra Colonial e o medo dos seus medos. São casos à mostra dos cerca de 140 mil ex-combatentes portugueses atingidos pelo stress de guerra, essa doença camuflada numa espécie de clandestinidade.

São homens marcados. Hipersensíveis, desconfiados, revivem em permanente alarme os pesadelos do teatro de guerra. Deprimidos, ansiosos, agressivos, perderam a vontade de viver e do afecto, desfizeram amizades e família, saltam de emprego em emprego, isolam-se, porque "não os compreendem, não passaram pelo que eles passaram", e frequentemente entregam-se ao álcool e à droga. Em casos extremos, fogem pela porta do suicídio ou desabafam na violência do homicídio.
São cerca de 140 mil portugueses, atingidos por uma perturbação psicológica crónica com o nome clínico de distúrbio pós-traumático de stress (DPTS) ganho nos matos de Angola, Guiné ou Moçambique, e que, mal entendida pela generalidade da classe médica e ignorada pela instituição militar, existe quase na clandestinidade e sem direito aos "privilégios" da incapacidade de papel passado. Dezoito anos após o seu fim, e trinta e um depois do seu começo, a Guerra Colonial continua a contabilizar vítimas.
A questão só há três anos começou a ser estudada entre nós. O número avançado, 140 mil - extrapolado dos números indicados pelos americanos em relação aos seus ex-combatentes no Vietname -, corresponde à metade aritmética dos 280 mil soldados portugueses que enfrentaram situações de combate em África, no meio do milhão que passou pelos treze anos de guerra.
Afonso Albuquerque, psiquiatra de Lisboa, foi quem teve a coragem de ir à gaveta da História arejar este dossiê incómodo e convenientemente arrumado. Fê-lo servindo-se do natural campo de ensaio que é, para o caso, a Associação de Deficientes das Forças Armadas (ADFA), com os seus cerca de 14 mil sócios.
Na sede da ADFA, na capital, Afonso Albuquerque realizou os seus primeiros estudos e orientou pioneiras sessões de terapia de grupo, sete anos depois de o manual estatístico de doenças mentais da Associação Americana de Psiquiatria (DSM III) ter pela primeira vez catalogado e elaborado os critérios de diagnóstico da doença - sim, é uma doença! -, baseado ainda na experiência da Guerra do Vietname e como conclusão do seguimento de casos de "estado de choque" pendentes da II Guerra Mundial.

(Continua)

P.S. - Escrevi em 1992 este exclusivo para a revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Foi, se não me engano, o primeiro trabalho jornalístico publicado em Portugal sobre o nosso stress de guerra. Vejo hoje no DN que finalmente o País parece querer fazer alguma coisa...
Os nomes dos ex-combatentes são, aqui no Tarrenego!, fictícios.

1 comentário:

  1. Parabéns Hernâni mais uma vez. Foste o primeiro, talvez o único, a fazer um trabalho sério sobre esta terrível doença que afecta tantos ex-combatentes da Guerra Colonial. Parabéns ao Dr. Afonso Albuquerque que, em Lisboa, trata muitos deles, subestituindo-se aos sucessivos governos pós 25 de Abril naquilo que era e é sua obrigação. Confrontado hà alguns anos sobre esta situação Cavaco Silva «o computador» deu uma resposta a seu jeito: "é deixar passar o tempo; daqui a alguns anos serão apenas metade". Exactamente ele, Cavaco, que também esteve na Guerra Colonial, embora ao serviço da PIDE-DGS.

    ResponderEliminar