domingo, 23 de abril de 2017

Fernando Campos 2

"Lembrava-se apenas de que se esquecera... ou esquecera-se de se lembrar. Que queria? Fraca memória a sua!" suspirava. "Os anos!..." Fernanda tinha muitas vezes comigo este desabafo e eu tomava-lhe a preocupação, procurava colar-lhe os restos das lembranças, reconstituía-as em mantas de retalhos, a tentar conservar o calor das veias, a cor das faces, o brilho de um olhar, o tom de uma voz, o latejar dos corações atingidos pelo gelo do tempo que chegou ao seu limite... Procurar trabalhar a matéria perpetuável, no limiar do eterno... e transpô-lo! Tomar o esquecimento e recolocá-lo na memória! Repor a memória no pedestal do esquecimento, na cidade indiferente e distraída... nas cidades, vilas, aldeias e lugares distraídos e indiferentes por onde Silva Lisboa espalhou a rodos a fantasia e o riso!... Antes que o verme pontual e infalível roa com suas mandíbulas tenazes os últimos músculos putrefactíveis, ainda vivos, que o sal do artista fez contrair num sorriso, vibrar e estalar numa gargalhada. Fixar as recordações para ao menos essas se não transformarem em cinza!... Descuidados que somos até da única certeza indesmentível! Dir-se-á não querermos acreditar que nascemos mortais. Surpreende-nos sempre desprevenidos a notícia da morte. A carta, o telegrama que nos bate à porta quando se está longe. O telefone que toca como tantas vezes rotineiras... - Está? - Fernando? - Sim. - É para te dizer que o avô...

"Psiché", Fernando Campos

(Fernando Campos nasceu no dia 23 de Abril de 1924. Morreu no passado dia 3.)

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