Uma vez, na peixaria da Dona Augusta, seria mês de Abril, uma senhora perguntava se "As sardinhas..." e foi logo interrompida pela minha peixeira, que lhe respondeu "Estão muito boas, as sardinhas ainda estão boas". É claro que não estavam, e logo em ano de colheita medíocre, mas a peixeira tem de fazer pela vida. Eu trouxe biqueirão.
Já experimentaram, decerto já, tirar a cabeça aos biqueirões, abri-los pela barriga retirando-lhes a espinha, que sai muito facilmente, temperar estas "costeletas" com sal, pimenta preta moída na hora, limão e um quase-nada de alho picado, e deixá-los neste preparo aí umas quatro horas, duas para cada lado? E depois passá-los por ovo e pão ralado e fritá-los sem deixar queimar? E fazer entretanto um arrozinho de bacalhau com trocinhos de tronchuda? Arroz carolino, já se sabe, que se transforma com o peixinho num verdadeiro manjar de deuses. Mas decerto já experimentaram.
Dica: as espinhas saem ainda mais facilmente se os biqueirões forem do dia anterior. Mas, para mim, peixe ou é do dia ou já não é peixe. Em miúdo, muito gostava eu de ouvir às peixeiras de Fafe o pregão "É da biba, olha a bibinha", e ficava-se logo também a saber que as sardinhas nesse dia seriam mais caras. Mas eram "como prata". Hoje tenho a sorte de morar em Matosinhos, a dois passos do porto de pesca e da lota. O mais das vezes trago para casa peixe vivo, literalmente vivo, que os pescadores dos barcos pequenos estão a acabar de entregar. O que me levanta alguns problemas, operacionais e... de consciência. Um dia tive com uma solha uma luta cujos pormenores não conto nem quero lembrar. Ganhei, mas portei-me mal. E só à mesa é que me perdoei.
Fanecamente falando
Bem boas que elas andam, as fanecas. Já repararam? Se calhar a mãe Natureza resolveu chamar à razão a nem sempre atinada lei das compensações, mas a verdade é que durante a quase década baixa da sardinha, uma desgraça, a faneca comportou-se sempre com uma categoria de que eu já nem me lembrava. Regalei-me.
Gosto delas fritas. Só com sal e passadas por farinha milha, à tasco, ou então mais à minha moda, tratadas também com pimenta e limão e depois envolvidas com farinha triga e ovo. Sem outros truques ou invenções. Há derivas que aceito e como, mas estão longe de me satisfazer. Insisto: a faneca só me enche as medidas quando na sua pureza original. Frita.
Uma vez há muitos anos, pela madrugada, deixei que me metessem num barco e fui à pesca da faneca com o grupo do meu saudoso amigo Adélio Santos. Quer-se dizer: eles foram à pesca e eu fui vomitar uma noite de copos e sem passagem pela cama. Não sei se a nojeira serviu de engodo, mas o certo é que aquilo era peixe até dar com um pau. Seríamos uns seis ou sete naquela companha de ocasião e toda a gente teve direito a um ou dois baldes cheios de fanecas e cavalas, até eu, que pelos vistos também tinha feito a minha parte e não sabia. Estava na idade da toléria e tão tolo era que desprezei então as cavalas, hoje em dia com lugar cativo na minha lista de pitéus.
Mas voltemos às fanecas. O meu amigo Lopes, que é tão fanequeiro como eu, diz, no seu mar de sabedoria, que "a faneca é um peixe muito honesto". E é. Em diversos sentidos e apesar de já ter andado por aí na boca da malandragem armada em carapau de corrida. A este respeito (ou a respeito da falta dele), torno a Fafe, à década de setenta do século vinte: quem é desse tempo e não se lembra de aproveitar a barafunda das quartas-feiras para passar por elas, pelas gajas, em Cima da Arcada, roçar-lhes o cotovelo pelas mamas como quem não quer a coisa, dizer-lhes entredentes "Ah, faneca, comia-te toda!" e levar um estalo na cara que acabava logo ali com todos os tesões? Quem não se lembra, nem era homem nem era nada. Ou então sofre de Alzheimer e está desculpado.
O Lopes tem razão: a faneca é um peixe muito honesto. Depois, há fanecas mais honestas do que outras. Em minha casa, por exemplo, só entram fanecas do alvor, pescadas já dentro da manhãzinha, como daquela vez com o Adélio mas agora por mãos que sabem. Um luxo. Mordomia matosinhense. São fanecas do mar que eu vejo da minha varanda. Madrugo também, compro-as vivinhas da silva, ainda sem terem passado pelo castigo do gelo e isentas de outras burocracias normalizadoras e estragativas, amanho-as eu, eu é que sei. Não menos importante: comemo-las no próprio dia. Exactamente. Elas andaram e andam bem boas, mas é preciso saber dar-lhes as voltas.
Matosinhos tresanda a Matosinhos
Agosto de 2019. Matosinhos cheira mal. Faz parte. E aos domingos mete nojo. Os
restaurantes de peixe rebentam pelas costuras e pelas esplanadas, e isso
é bom para o IVA, mas fedem e fumegam num alucinante aviso do que
decerto será o fim do mundo de um modo geral. Aos domingos, Matosinhos
cheira a sardinhas mal descongeladas e a grelhas que não vêem água desde
a grande seca de 1948. Cheira também a lixo deitado alegremente à rua
sem norma nem excepção. Cheira também aos escapes bronquíticos dos
incendiários autocarros da Resende. Quer-se dizer: Matosinhos cheira
mal, fede ao natural e ao gasóleo, tresanda a Matosinhos.
Com vista para o mar se me puser de lado, moro há mais de trinta anos ao
dobrar da esquina da restaurantíssima e concorridíssima Rua Heróis de
França, no epicentro exacto dos vapores e malinas gastronómicas
matosinhenses. Por estes dias a Rua Heróis de França está praticamente
impraticável, pelo menos desde Tomás Ribeiro até às funduras da Lota,
mas suponho que depois da Lota continua. Ecopontos e contentores
tresandam perigosamente, mesmo à distância: nauseabundam a comida
estragada, a peixe podre, a vomitado, a fermentado, a ranço, a lavadura
para porcos, a ácido, a tóxico, a bagaço, a estrume, a bosta. Matosinhos
World’s Best Fish, iniciativa da Câmara Municipal para inglês ver, só
pode ser um equívoco, uma piada. E o fedor corre pela rua e entranha-se
nas casas e nas roupas. Nos pulmões.
O Senhor Varredor que se ocupa de Heróis de França e faz um trabalho
impecável, e com quem dou, sempre que podemos, dois dedos de conversa,
pediu-me que eu fosse deitando os olhos ali às redondezas dos ecopontos
novinhos em folha, porque se calhar um destes dias lá estará ele
estendido ao comprido, evidentemente gaseado por aquele fedor que não se
aguenta.
Claro que Matosinhos não tem o melhor peixe do mundo. Tem um peixe
honestinho, com que me vou regalando cá em casa, e não é peixe de
restaurante. É outro peixe, de que a publicidade não sabe, e ainda bem
para mim. Por outro lado, Matosinhos terá provavelmente o melhor pior
fedor do mundo. Entre o peixinho e o fedor, às tantas nem me queixo. Na
verdade, confesso, gosto de Matosinhos assim.
P.S. - Hoje, 21 de Novembro, é Dia Mundial da Pesca.
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