Ano de 2004. O Presidente da República Jorge Sampaio despede o 
primeiro-ministro Pedro Santana Lopes, por indecente e má figura. 
Eleições legislativas são antecipadas e marcadas para 20 de Fevereiro de
 2005. José Sócrates é o novo líder do PS e da oposição. Vai a votos. 
Durante a pré-campanha e campanha eleitoral, critica Santana Lopes, que 
se recandidata pelo PSD e promete não aumentar impostos.
O meu jornal manda-me "tramar" Sócrates. É preciso ligar-lhe 
imediatamente e perguntar-lhe se, caso ganhe as eleições, vai subir os 
impostos. Mas que pergunta inteligente! Que armadilha bem montada! 
Pincéis desta marca sobravam sempre para mim. Como já aqui contei, as 
pessoas de bem, ou as pessoas de mal que faziam questão de uma fachada 
de bem, recusavam-se a falar com o 24horas: tinham consciência de que, 
se abrissem a boca, tudo o que dissessem poderia ser  usado contra elas.
 E geralmente era. Nem que lhes telefonássemos apenas para saber as 
horas, haveria de sair  dali cagada da grossa. Nós depois ligávamos a 
ventoinha e espalhávamos a merda. Dito de outra forma: as pessoas 
minimamente  informadas fugiam de conversar connosco como o diabo foge 
da cruz. Umas  tinham vergonha na cara ou medo e outras desprezavam-nos 
simplesmente.  Umas e outras sabiam que as nossas perguntas tinham quase
 sempre volta  de foda. Se desse jeito, pedíamos a A para falar de B, 
para a seguir  metermos A e B no mesmo saco e malharmos nos dois como se
 fossem um só. Por outro lado havia quem fizesse tudo para aparecer.
Portanto o meu jornal manda-me "tramar" José Sócrates. É só ligar-lhe, a
 ele que nunca atende o 24horas e que escorna os jornalistas em geral 
por uma questão de princípio. Ligo, ligo, ligo, o dia inteiro. E nada e 
nada e nada, o dia inteiro. Ao pôr-do-sol tento o inimaginável truque, o
 long shot, como Lisboa gosta de me dizer e eu só me rio: marco o
 número de Pedro Silva Pereira, o braço-direito de Sócrates, e sai-me do
 outro lado o Sócrates inteiro e desconfiado, num por acaso que me enche
 de adrenalina. Identifico-me, ele vai desligar de seguida, peço-lhe que
 não e faço-lhe a pergunta de um milhão de dólares: - Se vencer as 
eleições, se for para primeiro-ministro, vai subir os impostos?
José Sócrates não me manda àquela parte, mas podia, que eu não lhe 
levaria a mal. Ainda assim, empertiga-se, serigaita-se, despeita-se, 
esganiça-se e responde-me agressivamente: - Mas quem é que você é? E 
quem é que pensa que eu sou? Isso é uma pergunta ridícula. Acha mesmo 
que eu lhe vou responder? Sei muito bem o que quer, mas daqui não leva 
nada. Não lhe respondo. Acha que eu sou um principiante? E o senhor não 
tem nada de útil para fazer?...
Tenho. E faço. "Reformulo" e ponho pó de talco na pergunta: - Se o 
Senhor Engenheiro for o próximo primeiro-ministro, posto que ganhe as 
eleições, vai subir os impostos?
Sócrates quase que rebenta. Discutimos mais uns três minutos, tempo de 
um assalto no boxe, um a bater no ceguinho, o outro a agredir o 
invisual, eu não sabia que sabia discutir assim com cabeçudos, e ele 
desliga.
Saio dali exausto, nervoso e contente com a discussão. É ainda a 
adrenalina a mexer comigo. Geralmente o que (não) consegui é mais do que
 suficiente para ser a capa inteira do meu jornal no dia seguinte, em 
letras garrafais: "Sócrates entalado pelo 24horas" ou "24horas entala 
Sócrates" ou "Sócrates não responde ao 24horas" ou "Sócrates tem medo do
 24horas" ou "24horas assusta Sócrates" ou.
Apresso-me a ligar para Lisboa. Conto a minha façanha, espero pelos 
parabéns. O chefe critica-me irritado "A resposta do gajo é 
inaceitável!", engulo em seco e explico ao chefe "Olha, foi o que eu 
disse ao gajo, que até ia da tua parte e que tu nunca na vida irias 
aceitar uma resposta assim, e que portanto ele que me dissesse mas é o 
que tu queres que ele diga, que até já tens o título feito e tudo, mas 
não adiantou..."
O meu textinho saiu a uma coluna numa página interior, provavelmente par. Do assunto da manchete não me lembro.
P.S. - Publicado originalmente no dia 18 de Maio de 2020. Era uma história prometida e com a qual concluí, para já, a série que dediquei ao falecido jornal 24horas. José Sócrates ganhou as eleições em questão, sacando a primeira maioria absoluta para o
 PS. O resto é o que se sabe e o que mais virá a saber-se. O 24horas  
nasceu em 1998 e morreu em 2010, um ano depois de os seus alegados  
responsáveis terem liquidado a Redacção do Porto, a sangue frio e pelas 
 costas. Eram os primeiros dias de Maio quando nos despejaram no  
desemprego, e podem limpar as mãos à parede. Mas tinha piada o pasquim, 
 que até chegou a ser bem feito, e é a bíblia do jornalismo que hoje se pratica em Portugal.
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