Redacção (exactamente: cção).
A televisão é muito importante.
Gosto de ver na televisão as redacções das televisões porque nas
redacções das televisões que dão na televisão não há cadeiras partidas.
Trabalhei em muitas e variegadas redacções, na rádio e sobretudo na
imprensa, mas nunca na redacção de uma televisão.
Nas redacções onde eu trabalhei as cadeiras eram todas mancas e
andávamos à pancada por uma que se segurasse mais ou menos. O
sobrevivente marcava a sua cadeira para toda a vida, mas quando virava
costas já ela estava debaixo do cu do lado. E andávamos outra vez à
pancada. Foi por isso que, quando chegou a altura, estávamos sem forças
para irmos às ventas dos bandalhos que fazem profissão de destruir
redacções e que têm cadeiras da televisão. Feitas de cortiça.
A televisão é muito boa porque dá na televisão. Eu gosto muito da televisão.
Uma vez à noite, na TVI, Janeiro de 2012. Marcelo Rebelo de Sousa pregava aos peixes, na sua habitual homilia dominical. Falava da troika e de Cavaco, de Passos Coelho e de Seguro, da UGT e da CGTP, da Grécia e da Alemanha, do Benfica e do Sporting, de carecas e de guedelhas, da fome e da fartura, de tudo e de nada. O costume. De repente, lá atrás no cenário da redacção vazia, passa a dona Alice das limpezas, de aspirador pela trela, logo seguida pela dona Amélia, com um caixote de lixo na mão, e da dona Matilde, que não resiste e acaricia com o pano do pó o tampo de uma das mesas de trabalho. Grande momento de televisão! Esqueci-me da arenga do Professor (na verdade os seus comentários nunca me interessaram para nada), e concentrei-me no desfile em fundo. Fiquei cliente do programa de variedades, mas infelizmente elas nunca mais apareceram...
- Gosto muito de o ver na televisão!
- E que tal aqui ao vivo, hã?...
- Gosto muito de o ver na televisão.
O adepto. O adepto anda quatro anos a poupar para acompanhar a selecção no Mundial. Ou então assalta um banco. Acompanhar a selecção no Mundial implica, às vezes, atravessar meio mundo e morar fora durante um mês - coisa para custar um dinheirão. O pão e água para toda a família, que fica em casa, justifica-se portanto como regime de emergência, e o assalto a bancos também. É o amor, é o país, é a selecção. Está certo.
Depois a selecção está a jogar miseravelmente e a levar três secos a dois minutos do fim e já com guia de marcha para casa. E o adepto entra numa depressão desgraçada, mãos esgadanhando a cabeça incrédula, lágrimas esborratando as pinturas de guerra, dei cabo da minha vida por esta merda, ai os meus ricos filhinhos, mais me valia morrer, uma tristeza que só vista. Exactamente. A televisão vê a tristeza do adepto - profunda, incrédula, esgadanhada e esborratada - e passa-a no ecrã gigante do estádio. Em câmara lenta e HD. As lágrimas do adepto, momento televisivo de rara beleza. O adepto vê que está a ser visto na televisão, e salta, e ri, e manda beijinhos, e faz caretas, e tira macacos do nariz, e fica tão feliz, tão feliz, tão feliz da vida, que se foda o desespero, que se foda a selecção, que se fodam os filhos, valeu bem a pena a fome que passaram durante quatro anos. Ou o assalto ao banco. Que está certo e também dá na televisão...
O trabalho infantil é uma tragédia, uma vergonha, sobretudo se a criança ajudar no campo os pais pobres para haver alguma comidinha à mesa.
O trabalho infantil é muito bem, um orgulho, principalmente se a criança entrar numa telenovela ou se for modelo e der na televisão (esta parte da televisão é importantíssima!), enriquecendo os pais remediados.
Depois há ainda as crianças, estas são do piorio, que, órfãs de tudo, fazem sapatilhas de marca para as entrevistadoras e para os entrevistadores da televisão que entrevistam as crianças que entram nas telenovelas e nas passarelas e para os babados pais, que no fim pedem recibo.
Parece que a diferença está nisto, segundo percebi uma vez no programa Sociedade Recreativa da RTP: os miúdos das telenovelas e da moda têm "agente"; os moncosos do campo e das fábricas, não...
Os ponteiros do relógio andaram um quarto de hora, mas a televisão não: a missa continuava no mesmo sítio. A minha sogra agitava-se, os impasses incomodam-na sobremaneira, especialmente se meterem rancho. Levantou-se então do trono e ordenou: - Vamos mas é comer, que isto é povo que nunca mais acaba para a sagrada comunhão!...
A minha sogra deixou de se deitar após a digestão do almoço porque senão, diz ela, depois não dorme nada à noite. Portanto dorme toda a tarde no sofá da sala em frente à televisão ligada.
Com uma curta pausa para o lanche, evidentemente.
Adoro, adoro, adoro!...
Adoro ver na televisão o trabalho dos jovens e famosos chefs da nouvelle cuisine portuguesa. Adoro!
Adoro ver aquele modo de confecção improvável, os ingredientes inovadores, variados e mínimos, o requinte e a cerimónia, a delicadeza, a anorexia na dose, a obra de arte final, aquela espécie de ilha cubista no meio do prato em branco, adornada com bagas, com ervas inventadas, com salpicos e rabiscos de geleias coloridas. Salpicos e rabiscos aparentemente displicentes porém profundamente sábios. Adoro!
Adoro ouvir aquelas palavrinhas francesas, parecem palavras mágicas, nominhos de perlimpimpim. Adoro!
E a frescura?, ui, sobretudo muita frescura! Adoro!
Mal termina o programa, e enquanto ainda está fresco, salto para a cozinha, enfio dois bolinhos de bacalhau da véspera dentro de meio biju ressesso, bebo um copo de verde branco, atiro-me à galinha de arroba que a minha mãe me mandou de Fafe e faço a boa e ancestral arrozada de cabidela. A cabidela monumental e histórica. E vai para a mesa no panelão, fumegante como uma velha locomotiva a vapor. Ah, caralho!, então é que eu me regalo...
Convêm-me os jogos de futebol que começam em directo na televisão às nove e meia da noite. Como me deito às nove, na manhã do dia seguinte é só novidades...
Quim Barreiros cantava, agarrado ao seu acordeão. Era a história simples, exemplar, da mulher que entrou no comboio sem bilhete nem dinheiro e que teve que ir "dar ao apito" com o revisor para se safar da multa. Enquanto o Quim cantava, e como não havia universitários bêbados nas redondezas, alguém pôs um grupo de crianças a fazer um comboiinho que passava e repassava em fundo. Eram crianças de infantário, de creche, de jardim-de-infância, de pré-primária, não sei como é que se diz agora. Pequeninas, isso eram. E serviam de cenário e figurantes à cantiga do Quim, "pó, pó, pó, o cumboio vai andar, pó, pó, pó, e vai sempre a apitar, pó, pó, pó, eu já lhe tinha dito que para andar no cumboio tinha que dar ao apito".
Foi há mais de dez anos, na Curia. Deu na televisão em directo, para o País e mundo inteiro. Foi no programa Verão Total, da manhã da RTP1, com Sónia Araújo e Jorge Gabriel. Foi há mais de dez anos e parece que só eu é que vi. Se calhar as audiências andavam certas.
O reality show começou em Fafe
Quando eu era mocico e a ambulância acudia a um desastre com a sirene em altos berros, as pessoas de Fafe corriam para as escadas do hospital. Ali se plantavam, esperavam, prognosticavam, diagnosticavam, e finalmente assistiam ao espectáculo. Ao vivo. Em casos mais graves e raros, assistiam também ao morto. As escadas do hospital eram um palco de desgraças e caldeirão de emoções, cenário de reality show sem que Portugal sequer soubesse o que isso viria a ser. Eram também muito jeitosas para tirar fotografias de grupo a casamentos, bombeiros em festa e bandas de música, palavra de honra. Eram, portanto, o sítio mais in da vila e só estorvavam naquilo em que deveriam melhor servir, que era carregar macas com feridos e doentes por aqueles degraus acima ou por aqueles degraus abaixo, às vezes de cangalhas até ao chão.
Mas o espectáculo. A ambulância saía e o povo corria. O bom do Senhor Ferreira via-se à rasca para manter na ordem aquela gente toda e tola que fazia guerra por um lugar na primeira fila, sobretudo mulheres afogueadas e gordas, com os socos e o coração nas mãos ou enrodilhados no avental arregaçado. Faço notar que não foi por distracção que escrevi "a" ambulância. O artigo definido é aqui propositado e certo, porque, naquele tempo, dará para acreditar?, os Bombeiros de Fafe tinham apenas uma ambulância, uma velha Skoda vermelha que regularmente ficava sem travões no meio das descidas. Pois, como dizia, as pessoas de Fafe corriam para as escadas do hospital e regalavam-se de braços decepados e orelhas arrancadas e narizes esborrachados e fémures a céu aberto e pés desfeitos e tripas de fora e miolos ao léu e espinhelas partidas e... - Foi tiro?, Foi facada?, Foi sachola?, Foi o home?, Foi a amante? Foi desastre?, Foi o vinho? E muitos Uis! e muitos Ais! e muitos Coitadinhos! e muitos Valha-nos Deus! Estavam ali no relambório, a dar água sem caneco e a benzer-se na direcção da Igreja Nova, mas sem perder pitada. Vampiros mirones, iam ao sangue, queriam sobretudo molhanga, muita, vermelha vermelha como a ambulância que chegava enfim, esbaforida e ganinte. Era um fartote! Uma comoção!...
Agora as pessoas não precisam de ir a correr para as escadas do hospital. Sentam-se em casa, ligam a televisão e vêem na CMTV.
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