domingo, 14 de setembro de 2014

Guerra Junqueiro

A moleirinha

Pela estrada plana, toque, toque, toque, 
Guia o jumentinho uma velhinha errante.
Como vão ligeiros, ambos a reboque, 
Antes que anoiteça, toque, toque, toque,
A velhinha atrás, o jumentinho adiante!... 

Toque, toque, a velha vai para o moinho, 
Tem oitenta anos, bem bonito rol!... 
E contudo alegre como um passarinho, 
Toque, toque, e fresca como o branco linho
De manhã nas relvas a corar ao sol. 

Vai sem cabeçada, em liberdade franca, 
O jerico ruço duma linda cor; 
Nunca foi ferrado, nunca usou retranca, 
Tange-o, toque, toque, a moleirinha branca 
Com o galho verde duma giesta em flor. 

Vendo esta velhita, encarquilhada e benta, 
Toque, toque, toque, que recordação! 
Minha avó ceguinha se me representa... 
Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta, 
Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!... 

Toque, toque, toque, lindo burriquito, 
Para as minhas filhas quem mo dera a mim! 
Nada mais gracioso, nada mais bonito! 
Quando a virgem pura foi para o Egipto, 
Com certeza ia num burrico assim. 

Toque, toque, é tarde, moleirinha santa! 
Nascem as estrelas, vivas, em cardume... 
Toque, toque, toque, e quando o galo canta
Logo a moleirinha, toque, se levanta, 
Pra vestir os netos, pra acender o lume... 

Toque, toque, toque, como se espaneja
Lindo o jumentinho pela estrada chã! 
Tão ingénuo e humilde, dá-me, salvo seja, 
Dá-me até vontade de o levar à igreja, 
Baptizar-lhe a alma, prà fazer cristã! 

Toque, toque, toque, e a moleirinha antiga, 
Toda, toda branca, vai numa frescata... 
Foi enfarinhada, sorridente amiga, 
Pela mó da azenha com farinha triga, 
Pelos anjos loiros com luar de prata!...

Toque, toque, como o burriquito avança! 
Que prazer doutrora para os olhos meus! 
Minha avó contou-me, quando fui criança, 
Que era assim tal qual a jumentinha mansa 
Que adorou nas palhas o menino Deus... 

Toque, toque, é noite... ouvem-se ao longe os sinos, 
Moleirinha branca, branca de luar!... 
Toque, toque, e os astros abrem diamantinos, 
Como estremunhados querubins divinos, 
Os olhitos meigos para a ver passar... 

Toque, toque, e vendo sideral tesoiro, 
Entre os milhões d'astros o luar sem véu, 
O burrico pensa: Quanto milho loiro! 
Quem será que mói estas farinhas d'oiro 
Com a mó de jaspe que anda além no Céu!

"Os Simples", Guerra Junqueiro 

(Guerra Junqueiro nasceu no dia 15 de Setembro de 1850. Morreu em 1923.)

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