terça-feira, 23 de setembro de 2014

Abel Botelho 2

Naquela tarde mormacenta de Fevereiro, João da Silveira embarcara em Lisboa, no Almería, com rota à América do Sul. Considerava-se um sem-pátria, agora, na sua boa e amorável terra, sobre cujo manso e carinhoso seio não fumegavam senão escombros; terra perdida e maldita, pelo jacobinismo vermelho do 5 de Outubro abalada nos seus fundamentos e furtada criminosamente ao seu destino. Todo o ambiente tradicional em que havia sido criado, este parasitário rebento do velho regime vira-o derruir de roda de si com estrondo. Crenças, privilégios, isenções, benesses e preferências, toda essa contrafeita armadura de iniquidade e obscurantismo que sustinha ainda de pé a combalida ficção monárquica, tudo rolara desfeito, num epilepsiado arranco, numa comoção formidável, enquanto invadia ferozmente o espaço em torno um caótico fumo de confusão e de treva... e a visão inquieta do futuro envolta num torvo mistério, como um polvoréu de ruína.

Tudo lhe havia quitado descaroavelmente esta estúpida ideia da Rpública: os cinquenta mil reisitos que ele, mensalmente, ia ou mandava com toda a pontualidade receber, a título dum amanuensado hipotético na Junta do Crédito Público; as boas graças da sua apetecida noiva, a Laurita, filha dum acaudalado burguês e pelo pai abominavelmente educada, a qual agora, com o Afonso Costa no poleiro, já cantava também de papo; e até - o seu pensamento hipócrita rematava -, e até as nobres, as suavíssimas cores da bandeira de seus avós, esse azul calmo e esse branco ingénuo, símbolo irrefragável da alma nacional, ora via suplantadas por um vermelho de açougue e um verde de curral, duas tonalidades irreconciliáveis, duas cores ásperas, irritantes, heréticas, como punhais, como blasfémias.


"Amor Crioulo", Abel Botelho

(Abel Botelho nasceu no dia 23 de Setembro de 1854. Morreu em 1917.)

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