domingo, 27 de janeiro de 2019

Matateu: o deus velho, segundo Baptista-Bastos

Matateu: o deus velho

Matateu-Monumento foi incubado nas Salésias, num famoso encontro de futebol que opôs as equipas do Belenenses e do Sporting. Fautor primeiro da clamorosa vitória do grupo de Belém, o rapaz foi sacado aos ombros por uma multidão congestiva, que o transportou pela provecta Rua das Casas do Trabalho, onde meninas se debruçavam das janelas, subtraindo da morfologia do negro atónito resquícios de uma beleza de Apolo. E exclamaram:
"Que simpático!"
"Bonito, mesmo!"
A coroação processou-se no dia imediato. Cronistas desportivos, em lufa-lufa de imagética, besuntaram o nome de Lucas Sebastião da Fonseca com cognomes bizarros: "O Napoleão do Futebol Português", "O Artilheiro Negro" ou "Perigo na Grande Área com Matateu ao Remate".
Foi assim. Depois, certa imprensa alvoroçou-se em atribuir-lhe comentários profundos aos sistemas de jogo, dissertações didácticas sobre a galeria de futebolistas portugueses, avisos esclarecidos sobre as grandezas e misérias da bola. Matateu (termo que, no dialecto landim, significa "crosta"), perplexo, deslumbrado, deixou-se ir nas sugestões da popularidade doméstica. Sofreu, de bom grado, as metamorfoses determinadas pela súbita celebridade - mas nada conseguiu destruir-lhe a pureza inicial. A metade-instinto de que o carácter do homem é formado permaneceu fiel em si. As subtilezas da corrente arte da hipocrisia não aprendeu nunca. Matateu não sabe nada de nada e confessa isso abertamente, honradamente, porque a honra, nele, não é uma conquista, mas um instinto nato.
Falo com Matateu. Pergunto:
- Costuma ler?
Ele:
- Jornais. A secção desportiva dos jornais. Gosto muito de ver o meu nome nos jornais.
- Sabe quem é Hemingway?
- Não.
- E Picasso?
- Esse também não.
- E Aquilino Ribeiro?
- N... Espere aí... Ribeiro, disse Aq... a quê? A-aqui-ni-lo Ribeiro?
- Não foi Aquinilo Ribeiro, foi Aquilino Ribeiro.
- Pois. Não, não conheço mesmo nada desse nome.
- Gosta de música?
- Um pouco.
- Sabe quem foi Beethoven?
- Não.
- E Wagner?
- Não.
- Mas gosta de música?
- Um pouco. Samba. Sim, gosto de samba.
- Sabe quem é Dick Farney?
- Não.
- E Maysa Matarazzo?
- Não.
- Que divertimentos prefere?
- O cinema. Mas é uma chatice. Adormeço sempre. As letras daquilo que eles dizem passam a correr. Adormeço sempre.
- Leu alguma vez um livro?
- Nunca até ao fim.
- Porquê?
- Não percebo o que os livros querem dizer.
- Você tem viajado muito. De que país gostou mais?
- Da Itália.
- Porquê?
- Por causa das mulheres. Lindas. Comi algumas. Muito boas. Gosto bastante da Itália. Que rico país para um preto viver!
- Ouça uma coisa, Matateu...
- Olhe, escreva o que quiser; é assim que eu faço sempre, quando estou com um jornalista que me parece bom rapaz. Escreva o que quiser e ponha essas palavras na minha boca. À vontade. Mas não ponha lá que eu disse mal... Matateu não diz mal de ninguém!
[...]

"As Palavras dos Outros", Baptista-Bastos 

(Matateu, ou o Eusébio azul e em bom, como eu gosto de chamar-lhe, nasceu em 1927 e morreu no dia 27 de Janeiro de de 2000. Sobre Baptista-Bastos e "As Palavras dos Outros", escrevi aqui.)

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