sábado, 11 de janeiro de 2014

Oswald de Andrade

A mulher automática

(De São Paulo) - Qual é o seu cargo?
- Esteno-dáctilo-serpente-contralto-secretária...
- Isso é novidade. Eu ouvi no rádio naquele debate sobre a mulher moderna: esteno-dáctilo-serpente-secretária - A mulher atual!
- Ainda tem mais! Ponha glamour!
- Que é isso?
- Glamour é assim como eu sou. De concurso!
O homem pálido que esperava há duas horas examinou com os olhos a morena iodada no coral solto do vestido, sandálias de purpurina, cabelo lustroso, brincos, balangandãs e pulseiras, um beiço em ciclamen por Salvador Dali.
- O senhor sabe? Comprei ontem um leque que cheira. É formidável! Da América!
A voz grossa trauteou "La vie en rose".
- Dei o fora no meu darling porque ele não me levou à boîte ver o Charles Trenet. Fui com Mister Ubirajara.
- Quem é Mister Ubirajara?
- Acho que é canadense. Um gordo do anúncio. Tem gaita e possui um guarda-roupa perfeito. Dois ternos por dia! Me levou a Santo Amaro num 1950 formidável. Tomámos muitos drinks.
Na ante-sala de móveis mecânicos o telefone ressoou.
- Aposto que é o turco! Deixa tocar... Ele fala "negócio". Quer saber do "negócio" dele. Como se eu estivesse aqui para dar informações!
O telefone insiste.
- O senhor sabe? Um marinheiro contrabandista foi ao meu apartamento levar uns cortes de tropical e uns relógios suíços. Não falava nenhuma língua. Disse por gestos que era marinheiro, da Suíça. Enquanto ele se distraiu bati um relógio-pulseira e pus ele pra fora. Começou gesticulando que faltava alguma coisa. Banquei a boba. O homem falou baiano: - Deixe de besteira moça! Não gosto disso não! Me dá o relógio!
O telefone continuava. Ela arrancou num gesto o fone e berrou:
- Não me encha! Não é aqui!
Desligou violentamente. A voz do outro lado ficou dizendo humildemente:
- Esbéra, mucinha!
- Que esbéra, nada! Se ele ligar outra vez dou o telefone do Cemitério do Araçá. Vou fazer ele falar com defunto!
Houve um silêncio rápido. O homem pálido perguntou:
- A senhora é contralto?
- Sou. O que a mulher tem de melhor é a voz! - gritou desaparecendo numa porta volante. - A voz e a saliva!

"Obras Completas-10", Oswald de Andrade

(Oswald de Andrade nasceu no dia 11 de Janeiro de 1890. Morreu em 1954.)

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