segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Marques Rebelo

Andava, andava, esbarrando nos homens, nas mulheres, como se estivesse embriagada. Andava, andava. Veio-lhe claro como um clarim o desejo de humilhação. Queria se arrastar, pedir perdão, implorar. Lembrou-se da mãe, que fora buscar no recolhimento o consolo para a sua miséria humana. Lembrou-se da igreja do Rosário onde fora batizada, tão redonda, tão pequena, tão linda e dourada. Tinha ido qual fumaça o delírio místico da primeira comunhão aos doze anos... Caiu na realidade - estava perto da igreja. Caminhou contente, depressa, ansiosa por chegar. Sentia já nas narinas o ar confinado da igreja, morno e azedo, nos ouvidos o eco côncavo das naves desertas, nos olhos a obscuridade em que as almas se ajoelham ansiosas de luz. Não, não saberia rezar! Um vento ímpio, que soprou por anos, levara-lhe da memória as confortadoras, mecânicas orações. Mas comporia, inventaria, deixaria sair sem freio do coração as palavras mais espontâneas e humildes, os cantos mais sinceros de fé e de contrição. Deixar-se-ia arrastar pelo... Ah!, e estacou - a igreja estava fechada. [...] O céu não me quer! - e novamente mergulhou na onda humana, caudal de sofrimentos, inquietudes, aflições, incertezas, pecados. Fora arrastada. A tarde caía. A vida esperava-a, era preciso viver. E para viver, era preciso lutar, lutar, lutar - ia ganhando ânimo como um avião que toma impulso no campo para subir - lutar sempre! Um homem lhe sorriu, nos olhos o mesmo desejo de todos os homens. Ainda era moça, muito moça. Ainda...

"A Estrela Sobe", Marques Rebelo

(Eddy Dias da Cruz, que usava o pseudónimo literário de Marques Rebelo, nasceu no dia 6 de Janeiro de 1907. Morreu em 1973.)

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