Findo o almoço - podiam ser 9 horas - Dagoberto Marçau correu à
janela, que é uma forma de fugir de casa, sem sair fora de portas, como
se o movesse uma grande curiosidade. Mas, debruçado, apoiou o queixo na
mão soerguida e entrefechou os olhos, num alheamento de enfado ou
displicência.
Vivia ele, desse jeito, entre trabalheiras e ócios, como o
homem-máquina destas terras que ou se agita resistentemente ou, quando
pára, pára mesmo, como um motor parado.
Como que cobrara medo ao vazio interior. Não há deserto maior que uma casa deserta.
Entrava afobado, comia, ou, antes, engolia, de cabeça descaída, o
repasto invariável e ou saía de golpe ou ficava a espiar para fora.
A presença do filho recém-chegado, em férias, não lhe modificava essa
impressão. Em vez de confortar-lhe o abandono, agravava-o, mais e mais,
como uma sombra intrusa.
Lúcio voltou da cachoeira com a toalha enrolada na cabeça, como um turbante.
Levantou o braço num gesto de quem mais parecia dar do que pedir a bênção. E foi, por sua vez, sentar-se à mesa.
Não se defrontavam, sequer, nesse ponto de comunhão familiar, onde as
almas se misturam numa intimidade aperitiva. Forravam-se, assim, ao
constrangimento dos encontros calados ou das conversas contrafeitas e
escassas.
A casa-grande, situada numa colina, sobranceava o caminho apertado, no trecho fronteiro, entre o cercado e o açude.
Num repentino desenfado, Dagoberto estirou o olhar, por cima das
mangueiras meãs enfileiradas ladeira abaixo, para a estrada revolta.
Parecia a poeira levantada, a sujeira do chão num pé-de-vento.
Era o êxodo da seca de 1898. Uma ressurreição de cemitérios antigos -
esqueletos redivivos, com o aspecto terroso e o fedor das covas podres.
Os fantasmas estropiados como que iam dançando, de tão trôpegos e
trêmulos, num passo arrastado de quem leva as pernas, em vez de ser
levado por elas.
Andavam devagar, olhando para trás, como quem quer voltar. Não tinham
pressa em chegar, porque não sabiam onde iam. Expulsos do seu paraíso
por espadas de fogo, iam, ao acaso, em descaminhos, no arrastão dos maus
fados.
Fugiam do sol e o sol guiava-os nesse forçado nomadismo
Adelgaçados na magreira cômica, cresciam, como se o vento os
levantasse. E os braços afinados desciam-lhes aos joelhos, de mãos
abanando.
Vinham escoteiros. Menos os hidrópicos - doentes da alimentação tóxica - com os fardos das barrigas alarmantes.
Não tinham sexo, nem idade, nem condição nenhuma. Eram os retirantes. Nada mais.
"A Bagaceira", José Américo de Almeida
(José Américo de Almeida nasceu no dia 10 de Janeiro de 1887. Morreu em 1980.)
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