Assim como, libertado de reis, ele não quer mais ser escravo senão de charlatães, assim também, uma vez descarregado do sofisma divino e precisando de algum outro símbolo a que se apegar, encomenda-se devotadamente ao acaso, ao desconhecido, ao inescrutável, e filia-se na política, bajula o cacique e compra cautelas de três vinténs.
Insanavelmente beato pelas fatalidades atávicas da sua raça, sente a necessidade espiritual de iniciar-se nalgum mistério que substitua o dogma e pede então à maçonaria um novo pão eucarístico e um cerimonial litúrgico parecido com o baptismo, com a primeira comunhão e com a crisma. E a sua alma de cândido neófito exulta com a posse dos variados sacramentos dessa religião nova, a que ele será tão fiel como foi à antiga, seguindo-lhe os preceitos e os ritos com a mesma compenetrada unção com que outrora ia à missa, ao sermão e à desobriga.
Quando ninguém precisa da cooperação da sua força chamam-lhe Zé Povinho, figurando-o com uma albarda às costas, e é o lobo manso de quem todos mofam. Quando aos filósofos em desinteligência convém açulá-lo, chamam-lhe o Povo Soberano, omnipotente e absoluto.
Por sua parte, ele acha-se no seio da civilização que o explora como o touro em tarde de corrida no meio do redondel. É puro, bravo, boiante e claro. Está aí para o que quiser dele o capinha, o bandarilheiro e o espada. Acenem-lhe com o trapo encarnado e ele arrancará sempre com lealdade e braveza, entrando pelo seu terreno, acudindo ao engano e indo ao castigo de todas as vezes que o citem para atacar, para escornar, para estripar e afinal para morrer, o que tudo para ele é unicamente marrar.
"As Farpas II", Ramalho Ortigão
(Ramalho Ortigão nasceu no dia 24 de Outubro de 1836. Morreu em 1915.)
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