- Quer ouvir o meu projeto? segredou o menino sardento.
- Ah! sim. Ia-me esquecendo. Acabe depressa.
- Eu vou principiar. Olhe a minha cara. Está cheia de manchas, não está?
- Para dizer a verdade, está.
- É feia demais assim?
- Não é muito bonita não.
- Também acho. Nem feia nem bonita.
- Vá lá. Nem feia nem bonita. É uma cara.
- É. Uma cara assim assim. Tenho visto nas poças d’água. O meu projeto é este: podíamos obrigar toda a gente a ter manchas no rosto. Não ficava bom?
- Para quê?
- Ficava mais certo, ficava tudo igual.
Raimundo parou sob um disco de vitrola, recordou os garotos que mangavam dele.
A cigarra lá de cima interrompeu a cantiga, estirou a cabecinha. Era uma cigarra gorda e tinha um olho preto, outro azul.
- Qual é a sua opinião? Perguntou o sardento.
Raimundo hesitou um minuto:
- Não sei não. Eles bolem com você por causa de sua cara pintada?
- Não bolem. São muito boas pessoas. Mas se tivessem manchas no rosto, seriam melhores.
A aranha vermelha deu um balanço no fio e chegou ao disco da vitrola:
- Que história é aquela?
- Palavreado à-toa, explicou a dona da casa.
- À-toa nada! bradou o sardento. Cigarra e aranha não têm voto. Cada macaco no seu galho. Isto é assunto que interessa exclusivamente aos meninos.
- Eu aqui represento a indústria de tecidos, replicou a aranha arregalando o olho preto e cerrando o azul.
- E eu sou artista, acrescentou a cigarra. Palavreado à-toa.
Raimundo esfregou as mãos, constrangido, olhou os discos e as teias coloridas que se agitavam.
- Parece que elas têm direito de opinar. São importantes, são umas bichonas.
- Direito de dizer besteira! Resmungou o sardento.
- Não senhor. A cigarra tem razão. Palavreado à-toa.
- Então você acha o meu projeto ruim?
- Para falar com franqueza, eu acho. Não presta não. Como é que você vai pintar esses meninos todos?
- Ficava mais certo.
- Ficava nada! Eles não deixam.
- Era bom que fosse tudo igual.
- Não senhor, que a gente não é rapadura. Eles não gostam de você? Gostam. Não gostam do anão, de Fringo? Está aí. Em Cambará não é assim: aborrecem-me por causa da minha cabeça pelada e dos meus olhos. Tinha graça que o anão quisesse reduzir os outros ao tamanho dele. Como havia de ser?
- Eu sei lá! rosnou o sardento amuado. O caso de anão é diferente. Parece que ninguém me entende. Vamos procurar os outros?
"A Terra dos Meninos Pelados", Graciliano Ramos
(Graciliano Ramos nasceu no dia 27 de Outubro de 1892. Morreu em 1953.)
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