quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Cid Carvalho

Perdão do sândalo

Senhor, dá-me a mim que eu seja confiante
nos músculos que me deste
e que eu sempre acredite nos meus braços
e que eu confie nos meus gestos...
Dá-me a ilusão de que eu posso construir mundos
e de que amanhã é mesmo outro dia;
de que o dia de hoje não é o de ontem...
Dá-me a mim a impressão de que as palavras não se perdem
se forem combinadas
e de que, Senhor, tu nos assistes
antes desta combinação...
Dá-me que eu creia no valor das expressões
e que acredite na sucessão das palavras
como na sucessão infinita dos números...
Dá-me que eu creia que a doença de meu filho
é uma oportunidade para que eu o cure
e não para que tu me castigues... 

Quero acreditar, Senhor, que as criaturas boas
tu me deste para o meu descanso
e que as pessoas que não me entendem
tu me deste para que eu as convença...
Quero rezar, Senhor, não a conformação,
mas o entendimento...
Dá-me que eu não fira sem querer,
que não estrague o que não toquei,
que minhas impressões digitais não fiquem onde eu não fui
e que meus crimes sejam apenas os meus crimes
e, no máximo, o crime das pessoas de quem gosto.
Quero rezar o perdão do sândalo
que perfuma quem o golpeia;
o perdão das rosas que perfumam as mãos
que as esmagam...
Que o meu sangue contagie de ti
as pessoas que o derramarem
e que, se eu chorar, que minhas lágrimas
sejam como o pranto do céu
que redime a terra que o sol queimou...
Dá-me o mínimo de tantas coisas
não somente em favor de mim,
mas em favor dos que esquecem seus limites
e investem e se perdem
contra mim.


"Pássaro de Fogo", Cid Carvalho

(Cid Sabóia de Carvalho nasceu no dia 25 de Agosto de 1935)

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