quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Vianna Moog 4

Geraldo não consegue dormir. Faz várias tentativas para recomeçar uma leitura interrompida na véspera. Impossível. Não pode prestar atenção. Já fumou vários cigarros. Está descontente consigo mesmo, irritado, nervoso. O calor o incomoda: perturba-o a zoada dos mosquitos. Vira-se na cama de um lado para o outro e o sono não vem. Pesa-lhe a cabeça. Faz um derradeiro esforço para pensar em coisas agradáveis. Inútil. Impossível fugir de si mesmo. A discussão lhe fizera mal. E ele, afinal, se conduzira como um covarde. Para não comprometer a sua situação, o seu emprego, umas relações que para ele não tinham significação, deixara insultar a sua terra, a sua gente.
Na rua sopra um vento forte, uma nuvem de pó invade o quarto. Os fios da iluminação assobiam, parecem vaiá-lo. Longe, rola o bolão. De repente Geraldo lembra-se do pai, que fazia parte dessa sub-raça que ele deixara impunemente insultar. Preguiçoso, o seu pai... E as imagens daquela vida de heroísmo anônimo perpassavam-lhe pela memória. Primeiro via-o na sua fuga do Ceará, acossado pela seca. Tinha sido num ano em que as chuvas não vieram e a soalheira pintara de negro os campos. Via o pai no meio de uma legião dos caminhos esturricados, em demanda do litoral, cruzes toscas e anônimas balizando o roteiro daquela peregrinação de fantasmas. Do litoral, campo de concentração de todas as misérias do sertão, tomara o rumo do Amazonas, que era o primeiro destino que lhe apresentaram e que meio atonizado pelo sofrimento teve de aceitar. Embarcou como os outros para a Terra da Promissão, de que lhe falavam com hipérboles de entusiasmo os primeiros paroaras. Atravancavam o navio como o gado para o corte, em bandos consignados à morte, "com carta de prego para o desconhecido".

"Um Rio Imita o Reno", Vianna Moog 

(Vianna Moog nasceu no dia 28 de Outubro de 1906. Morreu em 1988.)

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