sábado, 22 de outubro de 2016

Domício da Gama

Maria sem Tempo

Era magra, pequena, escura. Tinha a extrema humildade dos que vivem longos anos sob o céu destruidor, sem pensar ao menos em resistir à sorte, com a passividade inerte da folha que o vento rola pelos caminhos. Era assim mirrada e seca e sombria, como se tivesse perdido a seiva ao ardor dos estios, como se guardasse das noites sem estrelas o negrume cada vez mais denso.
Era louca, porque só tinha uma idéia, e a criatura humana pode não ter idéias, mas não pode ter uma só. A sua era o angustioso desassossego das maternidades malogradas. Perdera um filho e o procurava. Andava pelos caminhos para buscá-lo e só levantava a voz para chamá-lo, ansiosamente, carinhosamente: "Luciano! Meu filho!..." E escutava longo tempo por trás nas cercas, no aceiro dos matos, à entrada dos terreiros das fazendas, nos desertos e nos povoados, onde quer que a levasse a sua dolorosa esperança. Aquela figura miserável, toda feita num gesto indagador, com a mão abrigando os olhos, à espreita, ou levantando o xale que lhe encobria a cabeça de cabelos hirtos, para ouvir melhor a resposta ideal, aquela encarnação de um desejo sempre iludido enturvava o esplendor do mais radioso meio-dia.
[...]

"Histórias Curtas", Domício da Gama

(Domício Afonso Forneiro, que usava o pseudónimo de Domício da Gama, nasceu no dia 23 de Outubro de 1862. Morreu em 1925.)

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