sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Chamam-lhe Protocolo de Manchester

Aqui atrasado passei dois dias na Urgência de um dos nossos maiores hospitais públicos. E fiquei com esta impressão, que preferi deixar amadurecer até hoje: no caos em que "funciona", a Urgência é uma indignidade para os doentes, incluindo os que vão só para o lanche ou os hipocondríacos com assinatura; é uma indignidade para os acompanhantes dos doentes, incluindo os mirones e outros estorvadores; é uma indignidade para as enfermeiras e para os enfermeiros que lá trabalham até à exaustão; é uma indignidade para as médicas e para os médicos que fazem o que podem e sabem, espreitam cortinas à procura de uma cadeira vaga e parecem baratas tontas no meio daquele circo; é uma indignidade para o hospital (um dos nossos maiores, já disse), para Portugal e para a Humanidade. Uma indignidade e uma violência. Entre mortos e feridos, salvam-se as auxiliares, que cantam e dançam, contam telenovelas e anedotas umas às outras e ao público em geral, destratam toda a gente e mandam naquilo tudo.

Sei que tenho o melhor serviço nacional de saúde do mundo. Dou-lhe uso em último caso, mas frequento-o de olhos abertos e coração grato. Querem saber o que é o nosso Serviço Nacional de Saúde? Não são taxas moderadoras e isenções. São exactamente as pessoas: os auxiliares, os médicos e os enfermeiros, que todos os dias trabalham no arame e sem rede, que já lhes tiraram há muito, e fazem "funcionar" uma coisa que na verdade já nem existe, ou, se quisermos ser bondosos, vai morrendo aos bocadinhos. 

A passada quarta-feira deveria ter servido para assinalar o Dia Global da Dignidade. Não sei se serviu nem sei se assinalou, mas lembrou-me o textinho acima, que publiquei originalmente no dia 17 de Abril de 2014. Já se morria nas urgências - eu vi -, e mais não havia pandemia, nem "epidemia de gripe", nem "surto gripal", nem o "caos" com aspas com que os políticos gostam tanto de jigajogar. (Os políticos e os jornalistas pelam-se por brincar às escondidas atrás das aspas.) Era apenas o caos normal, o caos do dia-a-dia numa Urgência de carne e osso - em exibição num hospital perto de si.

Sem comentários:

Enviar um comentário