segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Canábis ao pé da porta

Foto Hernâni Von Doellinger

Do outro lado da minha rua havia uma daquelas pequenas lojas tipo "regional gourmet". Azeitonas em frasco, cogumelos em frasco, meles em frasco, geleias em frasco, licores em frasco, frascos em frasco, dois presuntos em fraco, azeites e vinhos em caro, prateleiras um fiasco. Num benévolo gesto de boas-vindas, mal abriu o estabelecimento fui lá cheirar e avisar que o conceito é uma treta e que gourmet a sério é em minha casa, mesmo em frente, porque aqui a comida é muito boa, e gourmet deveria ser isso, mas não estamos abertos ao público. O gourmet - a ver se eu me sei explicar - quer-se da boca para dentro e não da boca para fora.
Estas lojinhas abrem mas não vendem nada. Abrem por abrir. E sobretudo fecham. Fecham muito bem. São "regionais" porém franchising, very tipical e very vazias, de produtos e clientes. O toque de "qualidade" é dado em palavras "estrangeiras", o que só abona a favor do produto made in Portugal. A loja da minha rua tinha primeiro uma menina, que passava a vida na ombreira da porta a fumar, a fumar, a fumar. E de repente hibernou. A loja. Mês e meio depois reabriu, já sem a menina mas com um rapaz. Que passava a vida na ombreira da porta a fumar, a fumar, a fumar. Nas costas, os dois presuntos pendurados no cabide tisicavam e agradeciam - e assim se produz o genuíno fumeiro nacional.
Passou-se uma semana e a lojinha encerrou de vez: veio uma carrinha limpar as escanzeladas prateleiras, três sacos de plástico bastaram e lá se foi mais um posto de trabalho, por assim dizer, que é o que a mim me importa. Fico infeliz por ter razão: o conceito era realmente uma treta. Esta gente não sabe o que é massa com bacalhau e o prato a esbordar...

Entretanto. Antes e depois da sua lastimável fase "regional gourmet", a lojinha do outro lado da minha rua foi quase tudo, por breves temporadas e com fracasso garantido. Butique de média costura, sapataria fina, loja de animais, bijuteria e outras inutilidades, escritório, despensa, garrafeira e outros souvenirs, recepção de alojamento local e até agência de viagens que nunca abriu, mas a mim cheirou-me sempre ao mesmo: lavandaria.

Nem de propósito, a lojinha é agora um posto de lavagem self-service para cães. E na porta ao lado acaba de abrir um estabelecimento para venda de "cannabis legal" e outros "produtos derivados de cânhamo", como, por exemplo, "creme de avelãs para barrar". Reconheço a mudança de paradigma: são dois negócios com irreprimíveis potencialidades. Vejo-lhes futuro. Principalmente ao dos cães, porque nasceu no tempo e no país certos. Um tempo e um país em que os animais são de estimação, mas as pessoas não. Já quanto à canábis, vamos lá ver: não sei se o pessoal aqui da zona não andará de momento mais interessado em algo, como é que se diz, mais pesado e ilegal, vá lá...

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