Vi num programa de televisão, daqueles que temperam o turismo com  
gastronomia, vi que na Turquia, esse lamentável lapso da União Europeia, há um 
respeito muito grande pelo pão. Um  respeito tão grande que bocado que 
cai ao chão não vai para o lixo. É  apanhado, guardado e comido na 
refeição seguinte. Não sei se é bem  assim, mas assim me foi contado há 
anos, e eu gostei do que ouvi, falou-me à  memória.
 Desconheço que 
influências culturais trocaram entre si Portugal e o  Império Otomano, e
 se essas influências foram tão longe que chegaram à bucólica freguesia 
de  Passos, Cabeceiras de Basto, propriamente à casa da minha querida 
avó materna. Sei é que foi neste fim de mundo que eu também aprendi a 
reverência pelo pão.
 Na Casa do Carreiro comia-se na cozinha, à 
volta da lareira. Os adultos  sentavam-se em compridos preguiceiros, 
apetrechados com uma conveniente  tábua-mesa de levantar e baixar, e os 
moços ajeitávamo-nos em pequenos  bancos de três pernas, os mochos, obra
 de carpintaria simples e  doméstica. Os cães também tomavam posição, 
anorécticos involuntários, à  espera dos ossos que não havia. Levavam 
troços de couves, cascas de batatas, espinhas de bacalhau de quarto e 
era um pau.
 O chão da cozinha era mesmo chão, rupestre, uma terra 
negra do fumo e da fuligem,  dos anos e vidas de uso e das águas 
entornadas que lhe davam uma consistência  de betão. Sim, as águas dos 
potes ferventes ou da banca de lavar louça (atenção!, uma banca de 
madeira), quando já desnecessárias, eram ali  mesmo esparramadas, 
voltando a reunir-se, acho que me estou a lembrar  bem, numa espécie de 
rego que as levava finalmente até lá fora, até ao  carreiro que dava o 
nome à casa. Como bilhar viciado, o chão da cozinha descaía para o lado 
 do carreiro, e tudo ajudava à limpeza. Depois era só esperar que 
secasse um pouco e varrer com uma vassoura de giestas apanhadas no 
monte. (E já lá iremos, ao monte.)
 Era neste chão que eu às vezes 
deixava cair o meu megalítico naco de pão, quase  sempre um bom pedaço 
de côdea, que era do que eu mais gostava. A minha  avó, mansamente, para
 que o meu avô não se zangasse comigo, dizia  apenas:
- Apanha o pão. É pãozinho do Senhor. Dá-lhe um beijinho e já o podes comer...
 E eu beijava o pão e comia-o, com todo o respeito, como se estivesse na igreja a comungar.
 (O meu avô nunca se zangou comigo. Ele, que tinha um zangar tão fácil com toda a gente...)
 Na nossa casa, em Fafe, a minha mãe insistia nestes ensinamentos. 
Dizia-nos, a mim e  aos meus irmãos, que o chão não suja, que o beijo 
purifica, que não  se pode estragar pão, é pecado, porque há muita gente
 com fome, pessoas mais pobres do que nós. E  se o pão ficava intragável
 e tinha mesmo de ir para a estrumeira, só depois  de um beijinho de 
adeus, porque, exactamente, era pãozinho do Senhor.
 Em minha casa também não se estraga pão, não se estraga nada. E, se se estraga, estragado fico eu.
 Não sei de onde veio esta ideia antiga, se estará mesmo ligada à fé, à 
 religiosidade popular, ao pão que é o corpo de Cristo. Acredito mais 
que era sobretudo a pobreza a defender-se, consciente da importância do 
pão na mesa, o pão que, ontem como hoje, era a única fartura, a última  
fronteira para a fome. O respeito pelo pão era o respeito pela fome. E  
ninguém respeita tanto a fome como os pobres.
Agora vou contar o 
seguinte: fui muitas vezes à merda. E gostava. A Bó mandava-me com uma 
telha à procura de poios de bosta fresca, que depois servia para 
calafetar o forno onde se cozia a broa. Eu passava sempre uma temporada 
das férias grandes na aldeia e ir à merda era o meu modesto contributo 
para que tivéssemos pão à mesa. Isso e às vezes ir à fonte buscar água, 
coisa de menina, só para se rirem de mim.
 (Para a aldeia ia-se na 
carreira da "Empresa", que saía de uma grande garagem à beira da Igreja 
Matriz, mesmo em frente à Rua do Assento. Nessa enorme garagem também se
 construíram carros para a Marcha Luminosa das Festas da Vila, "um 
espectáculo de luz, cor e som", mas isso é assunto que não vem ao caso. 
Era desengonçada e cinzenta a carreira. Cheirava mal, espevitava enjoos.
 Ia-se com o nariz enfiado em meio biju para não gomitar e mesmo assim 
gomitava-se - falo por mim. Ia-se na carreira até Várzea Cova, e ali 
acabava a estrada, acreditem no que eu digo: o mundo acabava mesmo em Fafe.
 Dali já só faltavam mais cerca de cinco quilómetros a pé, em monte de 
sobe e desce, fizesse sol ou diluviasse, certa vez até passando a vau o 
ribeiro que a força de um inverno estoura-vergas desencaminhara e 
transformara em rio violador de margens. Chegávamos então à aldeia, como
 nunca na vida lhe chamámos. Era Basto. Freguesia de Passos, concelho de
 Cabeceiras de Basto, mas simplesmente Basto, para nós.)
 A minha avó
 Emília, que era pequerricha e bondosa com um anjo, e era um anjo, fazia
 uma broa escura, muito saborosa, que se mantinha fresca durante dias e 
dias. Naquele tempo, o pão era o principal alimento dos portugueses. O 
pão e o vinho, como fazia questão de frisar, de forma propositadamente 
ambígua, a propaganda salazarista. Por ordem expressa de Salazar, beber 
vinho, naquela altura, era "dar de comer a um milhão de portugueses", e o
 patriótico e honrado  povo de Passos podia não saber o que era bife nem
 tinha electricidade nem água,  mas sempre deu o litro para que o resto 
do País não passasse fome. E o  resto do país já então era Lisboa.
 
Beber era um honesto modo de vida. Podia faltar tudo na casa da Bó de 
Basto, e às vezes faltava muito, mas havia sempre broa com fartura e 
umas imensas malgas de "amaricano" às quais eu gostava de mandar umas 
pescoçadas até dizer ahhhhhh!...
 Em Basto, as visitas eram recebidas
 com malgas de vinho e aparas de bacalhau salgado e falava-se como se 
fôssemos galegos, e a querida Tia Margarida felizmente ainda fala. O 
almoço era o "jentar", e o jantar era a ceia. E bebiam-se a acompanhar 
umas valentes pingoletas. Também se bebia durante a merenda, que era 
aquela meia dúzia de horas de sol que vai desde o "jentar" até à ceia. 
Bebia-se, portanto, apenas às refeições - quer-se dizer, o dia inteiro. E
 já agora: o almoço, assim dito, era o café da manhã. E a manhã era 
madrugada, com música de galos tenores e carros de bois deslubrificados.
 O café era cevada, feita ao borralho, numa velha chocolateira de barro e
 tampa tamborileira e dançarina. Que saudades tenho dessa vida e dessa 
idade, dessas ideias que graças a Deus me ficaram, ainda no outro dia o 
"dixe" outra vez ao meu tio Al Pacino, o meu querido tio "Jé".
 Enciclopedista fortuita e inocente, involuntária, alma fora da 
geografia e do tempo, a querida Bó de Basto alimentava-nos também o 
espírito. Lendas, contava-as que era uma categoria. Eram lendas mansas, 
de embalar, metiam mouras encantadas, príncipes, penedos. Penedos de 
morar, lembro-me bem e eu queria um. Eram contadas à lareira, depois da 
ceia, com o vermelho do fogo a bailar-nos nas caras espectrais, eu de 
olhos arregalados e boca aberta, uma e outra vez, como se fosse sempre a
 primeira. Os efeitos especiais das histórias da avó - esperta, santa sem diploma,
 anjo sem asas à vista - foram muitos anos mais tarde copiados pelo 
cinema americano. Até aquele famoso jogo de sombras manipulado pela 
irrequieta chama da candeia, coisa extraordinária e assustadora - era 
das histórias da minha avó. E o vinhinho aquecido ao borralho com uma 
maçã assada lá dentro também, mas isso parece que os filmes não 
aproveitaram. 
 Na manhã seguinte, pela fresca, íamos à lenha ao 
monte. Eu e e minha avó, maravilhosa guardadora de lendas e tudo. E a Bó
 mostrava-me o penedo, o exacto penedo da moura encantada, a frincha de 
entrada, não havia dúvidas. Ainda por cima, até as lendas da minha avó 
eram verdade. Como poderia mentir-se acerca do pão?...
P.S. - Hoje, 16 de Outubro, é Dia Mundial do Pão, Dia Mundial da Alimentação e,
 já agora, Dia Mundial da Coluna, que não vem ao caso. Resolvi que seja 
também Dia Mundial da Minha Bó de Basto.
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