quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Religiosamente

Quando a religião bate à porta
Bateram à porta e Dona Amélia abriu. Pensava que era o carteiro. Eram duas senhoras muito simpáticas com uma revista nas mãos. A revista chamava-se A Sentinela e as duas senhoras muito simpáticas queriam falar, mas Dona Amélia não as queria ouvir. Que não tinha vagar para revistas nem para jornais, que fizessem o favor de ir andando, que ela tinha mais que fazer. As pessoas com 84 anos e sós são mesmo assim, estão sempre muito ocupadas. As duas senhoras muito simpáticas, e pacientes, insistiam de pé enfiado na porta e revista em riste, falavam do fim do mundo, da Bíblia, de profecias, do Reino de Deus, de Jesus Cristo, de religião, e aqui, alto e pára o baile, Dona Amélia arrebitou as orelhas e perguntou: - Ai vocês são da religião?...
- Somos Testemunhas de Jeová - responderam as duas senhoras muito simpáticas e pacientes.
- Olha, ainda por cima jeovás! Rua, andor daqui para fora! - mandou Dona Amélia, sacando do toco de vassoura, mais rápida que a própria sombra. - Eu não acredito nessas lérias. Eu não acredito na religião católica, que é a verdadeira, e ia agora... Xô, xô, xô, já disse!

E diz o preguiçoso ateu
A minha religião é o trabalho.

O Velho Lau e o Lausperene
Que fique assente de uma vez por todas: o Velho Lau e o Lausperene não são uma única e mesma pessoa, como muito boa gente cuida, e, aliás, Lausperene nem sequer é pessoa. O Lausperene, ou Sagrado Lausperene, é a exposição e adoração permanente do Santíssimo Sacramento nas igrejas ou capelas. O Velho Lau é Venceslau Fernandes, ex-ciclista realmente de longeva carreira e pai da triatleta Vanessa Fernandes, Velho porque ganhou a Volta a Portugal de 1984, tinha então 39 anos, e correu até aos 46, derivando talvez daí a compreensível confusão...

O fim do Inferno é mau para o negócio
Evidentemente o Inferno não existe. O Papa Francisco tinha razão quando o disse, e se calhar ouviu-me ou leu-me antes, não sei quando nem onde. Mas a Igreja - que se apressou a desmentir o chefe, dizendo que ele não disse o que disse - não pode admitir semelhante franqueza: porque o Inferno é a bomba atómica do catolicismo. Sem Inferno, o que é que a Igreja em sotaina tem para ameaçar ou dissuadir os seus fiéis? "Olhai, amai-vos uns aos outros"? Seria de rir, se não fosse obsceno. Para além disso, o fim do Inferno é mau para o negócio.

Ben-u-ron, uma questão de fé
A minha sogra gosta muito do Ben-u-ron. Reclama "o meu Banuronzinho" por tudo e por nada, geralmente só para marcar posição de doente diplomada, inscrita na ordem e com as cotas em dia, questão de princípio, mas também para a insónia ou para a sonolência, para a garganta seca ou molhada, para o frio e para o calor, para as correntes de ar e para o mau-olhado, para a diarreia ou para a prisão de ventre, para os arrotos e para os espirros, para a flatulência ou para a surdez ou para a anosmia, para as unhas encravadas ou para os pêlos do nariz. A minha sogra só não quer Ben-u-ron para as dores de que se queixa como quem reza o terço em latim ou para a febre que nunca tem por mais que meta o termómetro. Para o resto - isto é, para aquilo que não diz respeito ao Ben-u-ron - a miraculosa pastilha é trigo limpo, farinha amparo. "Tenho muito fé no Banuron!", justifica a minha sogra. E eu, verdade seja dita, questões de fé não discuto.

P.S. - Este texto não teve o patrocínio da Bene Farmacêutica, Ld.ª. Infelizmente. 

O preço da fé
No tempo em que a fé era de graça, copo e vela dez tostões.

O reino dos céus por uma mobília de sala de jantar
Andam aos pares, como o Senhor mandou para a arca, aos pares e de Bíblia na mão, e vê-se logo que são boas pessoas. Missionam a bom missionar, de porta em porta, no meio da rua, sujeitam-se a malcriadezas em nome da fé que têm para dar e vender, e dou-lhes valor por isso. Um par interpelou-me um destes dias, ali em baixo, no passeio à beira-mar onde às vezes montam banca:
- Um minutinho, por favor, já pensou no que lhe acontecerá quando morrer? E porque morremos? Não quer saber a verdade acerca da morte?
Eu, que achei a abordagem um bocado desajeitada e tétrica, desnecessariamente radical, resolvi dar-lhes uma ajuda, recentrando o assunto:
- Não é nada da morte que me querem falar, pois não? A morte até poderia ser um bom princípio, em termos de marketing, de aproximação tablóide à clientela, quero dizer, mas vocês querem é falar-me da vossa Igreja, querem converter-me à vossa Igreja, querem anunciar-me Deus, o único verdadeiro, Jeová, é ou não é?
Era.
- Então, em verdade vos digo, assim será feito - disse eu, com voz de sarça ardente ditando leis -, ouço-vos, vocês falam-me da vossa Igreja e de Jeová, mas só se também me derem tempo de antena para eu vos falar de uma mobília de sala de jantar muito jeitosa que tenho para vender.
- Mas para que queremos nós ouvi-lo falar acerca da mobília de sala de jantar, se temos uma praticamente nova, estamos tão bem servidos e não precisamos de mudar? - respondeu o par em coro e percebi logo que, para além de par, formava também casal.
A resposta era mesmo a que me calhava, portanto sentenciei:
- Pois, caríssimos irmãos, eu e Deus é a mesma coisa: já tenho um e estou muito contente com Ele. Vou agora trocar, porquê?

Moral da história: vendi-lhes duas mobílias de sala de jantar. E amém.

À capela
Cantava muito bem à capela. Pediram-lhe que cantasse à igreja. Disse que ainda não estava preparado...

O distraído
Quando deu fé, já era ateu.

Judas
Sejamos direitos: sem Judas não haveria salvação. 

P.S. - Hoje, 21 de Janeiro, é Dia Mundial da Religião. Há quem diga que deve ser celebrado no terceiro domingo de Janeiro.

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