terça-feira, 28 de abril de 2020

António Valença, o craque esquecido

Foto retirada de O JOGO

O Chico Gordo e o Seninho
Na década de 70 do século passado houve em Portugal um notável avançado chamado Chico Gordo. Bernardo Francisco da Silva passou pelo FC Porto, Tirsense, Lourosa, Braga (creio que ainda é o melhor marcador da história dos arsenalistas no campeonato) e Setúbal, tendo brilhado também a grande altura numa famosa equipa do FC Moxico que foi campeã de Angola na época de 1972/73, portanto no tempo ainda da Guerra Colonial, ao lado de outros craques como Varela, Valença (o Fafe) ou Seninho. Exactamente, esse Seninho supersónico que, anos mais tarde, deixou as Antas para se juntar a Pelé, Carlos Alberto, Beckenbauer, Chinaglia ou Neskeens nos galácticos originais, os New York Cosmos, nos EUA.
Mas estão a ver o Chico Gordo, que por acaso até era magro, não estão?

O Zecão e o boxevista
Guardo gratíssimas recordações de São Clemente de Silvares. No Ademar, tasco praticamente gourmet e tão caro quanto excelente, com a ramadinha à porta e lá dentro o vinho a refrescar no poço, eu costumava encontrar o Zé Cão, que tinha trabalhado com o meu pai na Fábrica do Ferro e era o homem mais alto do mundo. Pelo menos era o homem mais alto de Fafe e arredores, e não há mundo melhor do que aquele. O Zé Cão, sentado, os joelhos batiam-lhe nos queixos. Era altíssimo, pele e osso, vagaroso, comovido, desengonçado, gentil, decilitrado, só, pobre, criança em corpo descomunal, com uns sapatões de palhaço e sempre agarrado à caneca de verde tinto, que naquelas mãozonas mingava até parecer uma xícara de casinha de brincar. Mãos hirsutas, nodosas e honestas. O Zé Cão era um homem com zê grande...
O Valença, uma das glórias do futebol local, gostava de se meter com o Zé Cão. Na verdade, o Valença gostava de se meter com toda a gente, mas o que aqui interessa é o Zé Cão. E o Valença, quando o apanhava a jeito, obrigava o Zé Cão a contar vezes sem conta as suas vindas ao Porto, ao Royal e ao Derby, para aliviar o tesão a preço combinado, e daquela ocasião em que ele teve de se haver com um "boxevista", um "boxevista" a sério - a piada a espremer era mesmo fazer o Zé Cão dizer "boxevista" -, na parte de cima da Ponte de Luís I, exactamente por causa do putedo. E o Zé Cão ganhou. O Zé Cão fazia os gestos como foi, a mando do Valença, disparava ganchos e uppercuts, cruzados e directos, era um campeão sem sair do seu canto, a lutar por merecer mais um quartilho que uma alma caridosa lhe pagasse...
O Zé Cão de São Clemente, o nosso gigante bom... E acabo de pensar que nem é nada Zé Cão: para os devidos e legais efeitos, passa doravante a ser Zecão, de Zeca grande, tão grande como o seu imenso coração.

O Augusto das botas amarelas
Depois de ter sido o primeiro imperador romano e de ter imperado forte e feio durante 41 anos, menos sete do que o fascismo português, e depois de ter morrido faz hoje exactamente 2005 anos, Augusto, também conhecido como Caio Otávio ou Caio Júlio César Otaviano, apareceu em Fafe de chuteiras amarelas ou vermelhas, consoante, fazendo-se passar por defesa direito. Estávamos às portas do 25 de Abril de 1974 e era ainda tempo de botas negras. Menos o Augusto, que ia ao secador todos os dias e disfarçava muito mal como jogador de futebol.
A augusta figura coincidiu na AD Fafe com memoráveis jogadores como Zé Maria, Neto, Costa, Leitão, Cláudio, Ismael, Martinho, Cândido, Manuel Duarte, Nino, Testas, Alfredo, Daniel Lopes ou Valença, recém-tornado do Ultramar. Só Augusto destoava, quer-se dizer.
No entanto, apesar daquele aspecto colorido e aprumadinho, Augusto, não sendo génio, era genioso. Uma vez, num "amigável" com o Vitória de Guimarães, pegou-se à pancada tenho na ideia que com o Romeu, que também era de gancho e acabou por jogar mais tarde no Benfica, no Porto e no Sporting. O Augusto, não.
As chuteiras de Augusto estavam muito à frente do seu tempo, como hoje se sabe. E o cabelo de Augusto marcou uma época em Fafe. Na época seguinte, de facto, Augusto foi enganar para outro lado. Em Barcelos, no Gil Vicente, e depois disso a História perdeu-lhe o rasto.

P.S. - Esbarrei hoje sem querer na fotografia lá de cima. Encontrei-a na edição digital do jornal desportivo O Jogo do passado dia 19, ilustrando um artigo assinado por Filipe Alexandre Dias, sob o título "Jogar, combater e morrer na Guerra do Ultramar". A fotografia não está assinada, infelizmente, mas eu conheço-a desde moço, passou-me pela mão, tenho-a de memória, porque está lá um dos meus dois ou três ídolos da bola: o Valença, ou o Fafe, como era conhecido na tropa e naquela superequipa do FC Moxico - mais do que uma equipa de futebol, provavelmente um projecto político do regime. Claro que o Tónio (António Ribeiro, de baptismo) calha também ser meu amigo. Já falei algumas vezes dele aqui no Tarrenego!, a primeira das quais no dia 17 de Julho de 2011. Faço agora uma síntese, mais lá para diante me espraiarei. No retrato, para quem não conhece, o Valença é o segundo de joelhos a contar da direita de quem vê, com a criancinha e a bola à frente. E, posto que gozão-mor do reino, era um jogador do outro mundo!

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