domingo, 26 de maio de 2019

A galinha da vizinha...

Foto Hernâni Von Doellinger

Mataram os vizinhos. Agora somos condóminos.
Éramos vizinhos, lembram-se? E a palavra vizinho queria dizer coisas boas: proximidade, amizade, companhia, ramo de salsa, comunidade, confiança, solidariedade, conversa no passeio à noite, copinho de vinho novo, cumplicidade, visita ao hospital, dar a camisa, porta aberta, comadre, quase família, melhor que família, tu cá, tu lá. Agora somos condóminos. E a palavra condómino tem uma carga que é um pesadelo: propriedade, despesa, individualidade, indiferença, reunião, ausência, chatice, discussão, impessoalidade, porta fechada a sete chaves (três, pelo menos), queixinha, fracção, má-língua, elevador, o tempo, bom dia e boa tarde, eu cá, tu lá.
E é irónico. Há mais de trinta anos que eu sou um condómino exemplar, um condómino da melhor pior espécie, mas hoje deram-me as saudades de ser vizinho. Sei que já vou tarde. Estamos todos condenados a sermos condóminos para o resto das nossas vidas. Se ainda ao menos fôssemos conDominus nobiscum...

Weather report
- Isto é que tem estado!...
- Realmente...
- E então hoje!...
- Lá isso...
- O que é que eles dão para amanhã?
- Eu...
- Pois. Então até logo, vizinho.
- Vá pela sombra, vizinha.
É, o elevador aproxima muito as pessoas. O elevador e o boletim meteorológico.

A falta de ar é opcional
As pessoas vivem fechadas em caixotes. Em caixinhas dentro de caixotes. E cada caixinha tem um respiradouro chamado varanda. E as pessoas fazem marquises.

Minha varanda, meu castelo 
No prédio onde eu moro, o meu apartamento é o único que não tem marquise ou paramarquise na varanda. Dá nas vistas, é verdade, destoa, incomoda os vizinhos, aliás condóminos, e todos os dias tenho a caixa de correio assediada por uns quantos panfletos em quadricromia e papel couché que me oferecem o sufoco a xis euros o metro quadrado. Muito agradecido, mas passo: a varanda faz-me falta tal qual está.
Gosto de correntes de ar, que hei-de fazer? Gosto de terra e gosto de mar. E gosto de levar com a terra e com o mar nas ventas. Gosto dos cheiros. Gosto de pensar (ou de pensar que penso), gosto de refrescar ideias. A minha varanda é o meu retiro. E é o meu quintal, a minha esplanada, o meu posto de vigia. Gosto de semear, de regar os vasos, de espreitar o nanocrescimento dos coentros, da salsa e do tomilho, e até tenho um loureiro e um carvalho, gostava de fumar a minha cachimbada e de beber o meu CRF "em balão previamente aquecido", que já não fumo e bissextamente bebo, gosto de ver passar navios. Condenaram-me a isso, a ver navios, mas eu gosto. Sou um gajo cheio de sorte: moro mesmo em frente ao mar, se me puser de lado.
Estão a ver a cabeça daquele cromo assamarrado e de chapéu enfiado até às orelhas, sentado na varanda, ignorante da chuva e do frio, de braço de fora e olhando o mar? A cabeça é minha, o cromo sou eu. Não podem ver, mas tenho uma manta a agasalhar-me as pernas. Estou muito bem, não se preocupem.
E estão a ver a gaivota belíssima, empoleirada no parapeito e quase em cima de mim? É a tal, a cagona que não me larga. A gaivota também sabe que ali é santuário, lugar de pensamento e liberdade. Somos cúmplices, praticamente almas gémeas. Mas a gaivota abusa, caga na varanda propriamente dita, o que enfurece a minha mulher. Eu, no que me diz respeito, tomo nota de mais um barco que entra no Porto de Leixões.

P.S. - Hoje, 27 de Maio, é Dia Europeu do Vizinho. Isto é: talvez seja. Na verdade, as várias fontes consultadas pelo Tarrenego! não se entendem quanto a uma data certa nem tampouco quanto ao nome do Dia propriamente dito. Típico de condóminos, não é?...

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