A graça
Que harmonia suave 
 É esta que na mente 
 Eu sinto murmurar, 
 Ora profunda e grave, 
 Ora meiga e cadente, 
 Ora que faz chorar? 
 Porque da morte a sombra, 
 Que para mim em tudo 
 Negra se reproduz, 
 Se aclara, e desassombra 
 Seu gesto carrancudo, 
 Banhada em branda luz? 
 Porque no coração 
 Não sinto pesar tanto 
 O férreo pé da dor, 
 E o hino da oração, 
 Em vez de irado canto, 
 Me pede íntimo ardor? 
 És tu, meu anjo, cuja voz divina 
 Vem consolar a solidão do enfermo, 
 E a contemplar com placidez o ensina 
 De curta vida o derradeiro termo? 
 Oh, sim!, és tu, que na infantil idade, 
 Da aurora à frouxa luz, 
 Me dizias: "Acorda, inocentinho, 
 Faz o sinal da Cruz." 
És tu, que eu via em sonhos, nesses anos 
 De inda puro sonhar, 
 Em nuvem de ouro e púrpura descendo 
 Com as roupas a alvejar. 
 És tu, és tu!, que ao pôr do Sol, na veiga, 
 Junto ao bosque fremente, 
 Me contavas mistérios, harmonias 
 Dos Céus, do mar dormente. 
 És tu, és tu!, que, lá, nesta alma absorta 
 Modulavas o canto, 
 Que de noite, ao luar, sozinho erguia 
 Ao Deus três vezes santo. 
 És tu, que eu esqueci na idade ardente 
 Das paixões juvenis, 
 E que voltas a mim, sincero amigo, 
 Quando sou infeliz. 
 Sinta a tua voz de novo, 
 Que me revoca a Deus: 
 Inspira-me a esperança, 
 Que te seguiu dos Céus!... 
"A Harpa do Crente", Alexandre Herculano 
(Alexandre Herculano nasceu no dia 28 de Março de 1810. Morreu em 1877.) 
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