domingo, 1 de novembro de 2015

Campos de Carvalho 2

O vento fustiga as velas, corre-me pela nuca e pelos cabelos, e volta para o mar alto.
Aqui em cima, no alto da Gávea, as estrelas cintilam mais perto: houvesse lua e eu talvez nela pudesse banhar as mãos de luz, no seu bacio de cristal - não como Pilatos mas como um cirurgião que se apresta para um parto difícil, o mais difícil da história, arrancando das entranhas do Desconhecido todo um mito e a sua verdade, séculos e séculos de mal-assombrados e equívocos.
Estou lírico como um teatro de ópera, e é bom que assim seja, que assim esteja, nesta noite tão rica em presságios, tão próxima do abismo dos céus e dos abismos do mar. Colombo devia sentir o mesmo quando pela vez primeira arremeteu contra as Índias e foi descoberto por indígenas a que chamou de índios e índios continuaram até hoje; e Marco Polo com suas verdadeiras patranhas, suas patranhas verdadeiras, ao descobrir que para ter vivido vinte anos no país do tártaros teria que pelo menos ter atravessado um dia o país do búlgaros, e se pôs então a escrever ou a ditar o
Livro das maravilhas; e Amundsen ao conquistar a duras penas o pólo Sul para nele depositar uma carta dirigida ao rei da Noruega, quando lhe seria muito mais fácil metê-la logo no correio ou entregá-la pessoalmente; e ainda e finalmente o primeiro homem a pisar e a mijar na Lua, ou o primeiro selenita a mijar e a pisar na Terra, deslumbrados um e outro com a hipótese de um dia ainda virem a mijar em outros planetas, em outras galáxias e em todo o universo, transformando assim o espaço cósmico nesse sonho de todos que é um mijadouro universal.

Mas vejo que me perco em divagações que só interessam aos cursos de história e não ao curso da história, e esta é e tem que ser para mim uma hora de definições (a hipotenusa é o lado oposto ao ângulo reto, no triângulo retângulo) e de pulso forte - embora eu esteja no momento com a pressão baixa e mal tenha conseguido outro dia dizer 32 e meio ao meu médico.

"O Púcaro Búlgaro", Campos de Carvalho 

(Campos de Carvalho nasceu no dia 1 de Novembro de 1916. Morreu em 1998.)

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