Chamo-me Ernesto, sou escritor e dobrei o
cabo dos cinquenta. Há chapadas de cal nos meus parietais; rareiam-me os cabelos na fronte alta
e escanteada; vincaram-se-me as rugas: - na
testa, porque muito pensei; aos cantos da boca,
porque muito sofri. A incandescência do meu
olhar de pecado, ambição e audácia é hoje substituída, a maior parte das vezes, pela luz plácida
da bonomia complacente, se não pela da piedade
pelos outros e por mim... Essas mãos frenéticas
que corriam pelo papel fora, à desfilada, sem
parar nem emendar, aprenderam, contendo-se,
a compor reflectidamente, com medida, precisão
e propriedade; e, mais e melhor, religiosas, - a
edificarem-se num gesto bento que desconheciam: erguerem-se a Deus para rezar.
Em tudo fui precoce: aos 19 anos, já tinha dois
romances publicados! Esses livros eram relâmpagos da minha fantasia, explosões do meu temperamento de pólvora, incêndios da minha sensualidade nua e bruta, sem sombra de resguardo,
sem rebuço de moralidade. Então, a Vida era
para mim a vida instintiva dos meus sentidos
desbocados: o sol ardia-me nas pupilas, estranha
brasa me escaldava a boca voraz, o meu hausto
sibilante sugava com avidez os perfumes do
jardim da existência. Entendia eu que a mocidade tinha todos os direitos, todos. Deus era
apenas o directo senhorio de uma propriedade -
a minha alma - que eu devia usufruir exaustivamente. O meu dever de moço era um só:
ser moço, isto é, gozar tudo que a vida contém e
me ofeceria. E a vida gritava em volta de mim
e eu gritava à vida! Meus desejos miavam como
felinos, mugiam como toiros, rugiam como leões
nas selvas. Uma única potência vital: o Desejo.
Um único movimento: a avançada frenética para
o ídolo - Mulher. Electrizado pela volúpia emanada de tudo que luz, ri e canta, no meu pequeno corpo de vime, a vibrar, a torcer-se, a contorcionar-se, ante o espectáculo desvairante da
beleza feminina, os meus desejos eram bocas de
vampiro, eram furiosas labaredas de línguas es
carlates e bifarpadas que galopavam cúpidas e
doidas. A alegria lúbrica estralejava nos meus
risos de inferno; era uma prece pagã a minha
súplica à carne; um hosana ímpio o meu credo
e o meu hino furioso à beleza das linhas e da
modelação de um maravilhoso corpo de mulher
ardente.
E o meu coração indefeso andou só pelo
mundo na vid'airada da tontaria humana!
"O Último Olhar de Jesus", Antero de Figueiredo
(Antero de Figueiredo nasceu no dia 28 de Novembro de 1866. Morreu em 1953.)
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