terça-feira, 17 de novembro de 2015

Rachel de Queiroz 3

Na parede caiada se desenhava, enorme, o emblema azul da Virgem Maria. Ao centro do pátio ficava o caramanchão cheiroso do jasmineiro e dentro dele, no fresco e no sombrio do verde, a imagem de uma moça de vestido branco e pés nus - uma Nossa Senhora bonita e triste.
Em redor do pátio as classes vazias, mudas, fechadas. O ruído dos passos crescia, ressoava pelos corredores, o terço da cintura da irmã tilintava, cheio de medalhas.
E eu tinha medo. A irmã era velha, de olhar morto, fala incolor e surda. Parecia feita de papel pálido, ou de linho engomado semelhante à corneta que trazia à cabeça e que se agitava a cada movimento seu, como uma ave. Parecia uma boneca de cera, uma figura, uma santa, só não parecia gente. Também não parecia gente a porteira seca, toda osso e nervo, nem a outra irmã que passou silenciosa e de cabeça baixa, sem um interesse, sem um olhar. Moça, jovem, só a Virgem Mãe adolescente do caramanchão; e, sendo de louça, tinha mais ar de vida e humanidade que aquelas outras mulheres de carne, junto de mim.
Papai, comovido e pálido, fora embora. Madrinha fora embora. O parlatório, onde eu esperava, estava àquela hora vazio e silencioso; ouvia-se apenas, através dos corredores, como um ruído abafado de mar distante.

Acheguei-me mais à irmã, quis lhe pegar na mão, não tive coragem, perguntei de onde vinha o barulho, lá de longe.
Vinha do recreio da noite que começava nos alpendres do fundo do colégio; e para lá nos fomos dirigindo, a irmã e eu.
Pelas varandas imensas espalhavam-se às centenas meninas de todos os tamanhos, com todas as caras deste mundo, vestidas de azul-marinho. Um grupo delas acercou-se de nós, sorridente, curioso. A mim me pareceram logo malvadas, escarninhas, hostis. Encolhi-me mais junto à irmã. Lá para trás outras meninas vinham chegando, e ouviam-se gritos:
- Novata! Uma novata!
A irmã me pôs a mão no ombro, mandou que me fosse reunir a elas, procurasse brincar, fazer amigas.
Eu resisti. Sentia cada vez mais medo e me agarrei resolutamente ao hábito grosso da freira:
- Queria ir para junto da minha mala.

"As Três Marias", Rachel de Queiroz

(Rachel de Queiroz nasceu no dia 17 de Novembro de 1910. Morreu em 2003.)  

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