domingo, 17 de novembro de 2013

Rachel de Queiroz

Depois de se benzer e de beijar duas vezes a medalhinha de São José, Dona Inácia concluiu: "Dignai-vos ouvir nossas súplicas, ó casticismo esposo da Virgem Maria, e alcançai o que rogamos. Amém." Vendo a avó sair do quarto do santuário, Conceição, que fazia a trança sentada numa rede ao canto da sala, interpelou-a:
- E isto chove, hein, Mãe Nácia? Já chegou o fim do mês... Nem por você fazer tanta novena...
Dona Inácia levantou para o telhado os olhos confiantes:
- Tenho fé em São José que ainda chove! Tem-se visto inverno começar até em abril.
Na grande mesa de jantar onde se esticava, engomada, uma toalha de xadrez vermelho, duas xícaras e um bule, sob o abafador bordado, anunciavam a ceia.
- Você não vem tomar o seu café de leite, Conceição? A moça ultimou a trança, levantou-se e pôs-se a cear, calada, abstraída.
A velha ainda falou em alguma coisa, bebeu um gole de café e foi fumar no quarto.
A bênção, Mãe Nácia! - E Conceição, com o farol de querosene pendendo do braço, passou diante do quarto da avó e entrou no seu, ao fim do corredor.
Colocou a luz sobre uma mesinha, bem junto da cama - a velha cama de casal da fazenda -,e pôs-se um tempo à janela, olhando o céu. E ao fechá-la, porque soprava um vento frio que lhe arrepiava os braços, ia dizendo:
- Eh! a lua limpa, sem lagoa! Chove não!...
Foi à estante. Procurou, bocejando, um livro. Escolheu uns quatro ou cinco, que pôs na mesa, junto ao farol. Aqueles livros - uns cem, no máximo - eram velhos companheiros que ela escolhia ao acaso, para lhes saborear um pedaço aqui, outro além, no decorrer da noite. Deitou-se vestida, desapertando a roupa para estar à vontade.
Pegou no primeiro livro que a mão alcançou, fez um monte de travesseiros ao canto da cama, perto da luz, e, fincando o cotovelo neles, abriu à toa o volume.
Era uma velha história polaca, um romance de Sienkiewicz, contando casos de heroísmos, rebeliões e guerrilhas. Conceição o folheou devagar, relendo trechos conhecidos, cenas amorosas, duelos, episódios de campanha. Largou-o, tomou os outros - um volume de versos, um romance francês de Coulevain.
E, ao repô-los na mesa, lastimava-se:
- Está muito pobre, essa estante! já sei quase tudo decorado!

"O Quinze", Rachel de Queiroz

(Rachel de Queiroz nasceu no dia 17 de Novembro de 1910. Morreu em 2003.)

Sem comentários:

Enviar um comentário