Riscado da lista de pagamentos da Capital  Europeia da Cultura 2012, o Teatro Jordão está para ali, com todo o  aspecto de abandonado e esquecido, a um mês de fazer 75 anos. É mais uma triste metáfora do desgraçado país que somos. Já li sobre  reabilitações, orquestras sinfónicas, bandas, academias, artes  dramáticas e visuais, universidades, estudos, anteprojectos, projectos -  e nada. Tretas e mais metáforas. Havia umas obras marcadas para terem  início em 2013 e eu não sei porquê mas não acredito nelas. Já não há  metáforas que aguentem. Não sei o que Guimarães pensa ao certo do caso,  mas a mim parece-me que o azar do Jordão é a vizinhança: o mau-olhado do Centro Cultural Vila Flor que lhe fica resvés e come tudo, tudo, tudo,  como o Sebastião da ancestral cantiga.
 Também não sei o que o Teatro Jordão  significa realmente para os vimaranenses e se a cidade reivindica a  preservação física da velha sala de espectáculos. Sei o que o Jordão  significa para mim, mas a minha memória vai para além das pedras. A casa pode vir abaixo, que as recordações daqui não saem.
 "Chove em  Santiago", o filme de Helvio Soto sobre os últimos dias do governo de  Salvador Allende e o golpe militar no Chile, vi-o pela primeira vez no  Jordão de casa cheia e a explodir de repente numa enorme manifestação  antifascista, comício de ignição espontânea, de raiva, o pessoal de pé  em cima das cadeiras, de punhos cerrados e erguidos, com uma única e  cada vez mais vociferada palavra de ordem - Filhos da puta! Filhos da  puta!! Filhos da puta!!!
 Andávamos ainda com o fogo do 25 de Abril no rabo e ninguém nos aturava. Bons tempos aqueles, havia sonhos.
 O Jordáohe, como se chama em Guimaráes, foi também o cinema dos meus primeiros filmes pornográficos. Era a novidade. A pornografia tinha chegado há pouco, com a liberdade, que  afinal é sempre um pau de dois bicos. Devo esclarecer, por falar nisso,  que os filmes pornográficos do Jordão faziam muito mal aos intestinos,  pior do que garrafão de vinho doce bebido de uma assentada. Nos  intervalos era um ver se te avias para ir à retrete, filas imensas de  braguilhas aflitas à porta das sentinas, porque os urinóis para o caso  não serviam.
 Quando me internacionalizei, um ou dois anos depois,  em França, pude verificar que com os estrangeiros, muito mais batidos na matéria, a coisa funcionava de maneira diferente. Para além de cada  qual poder escolher o lugar que quisesse na sala praticamente às moscas, não era preciso esperar pelo intervalo nem ir à casa de banho. Os  castiços dos franceses, toujours en avance...
 Já agora: ao contrário do que muito boa gente pensa que sabe, incluindo  alguns figurões com alegadas responsabilidades literárias, "Chove em  Santiago", célebre verso de abertura de um belíssimo poema de Federico  García Lorca, não se refere a Santiago do Chile, mas a Santiago de  Compostela. À minha querida Santiago de Compostela, pela qual o poeta e  dramaturgo andaluz também se enamorou.
 Lorca publicou em 1935 um  pequeno livro a que deu o nome de "Seis Poemas Galegos". Em galego o  escreveu e o poema mais conhecido do opúsculo é exactamente este:
Madrigal á cibdá de Santiago
Chove en Santiago,
 meu doce amor.
 Camelia branca do ar
 brila entebrecida ô sol.
 
Chove en Santiago
 na noite escura.
 Herbas de prata e de sono
 cobren a valeira lúa.
 
Olla a choiva po-la rúa,
 laio de pedra e cristal.
 Olla no vento esvaído,
 soma e cinza do teu mar.
 
Soma e cinza do teu mar,
 Santiago, lonxe do sol;
 ágoa da mañán anterga
 trema no meu corazón.
 Federico García Lorca
 
P.S. - Publicado originalmente no dia 16 de Outubro de 2013, então sob o título "Teatro Jordão, da pornografia à morte lenta". Salvador Allende nasceu no dia 26 de Junho de 1908.
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