Dizem-me que as claques têm um lado bom. Eu nunca o vi.
Dizem-me que as claques fazem falta ao futebol. Que tolos! O futebol é que faz falta às claques, mas não por causa do futebol. 
Comecei a ir ao futebol pela mão do meu pai. Íamos ao Campo da Granja  
ver o Fafe. O Campo da Granja tinha uma bancada pequena apontada ao  
grande círculo e uma nora atrás da baliza  do lado de São Gemil. A nora,
 neste caso, era um engenho para tirar água de um poço e não funcionava.
 Mas ficava num altinho muito jeitoso para a assistência. A assistência 
naquele tempo não era passe para golo, era  pessoas. Eu e o meu pai 
víamos os treinos, os jogos, os juniores em vez da missa (o que 
arreliava a minha mãe), as reservas e, ao domingo à tarde, o primeiro 
time. Os domingos à tarde da minha infância eram os  melhores dias do 
mundo. Até tinham altifalantes com marchas do John Philip Sousa.  Depois o meu pai deixou de ir à bola, por razão de força maior, e eu continuei.
O Campo da Granja desistiu para dar lugar a uma escola de  
pré-fabricados. E foi bom para todos. Ganhámos o ciclo preparatório e um
 estádio que havia de ser, mesmo encostado aos Bombeiros. Apareceu-me o 
 buço e, embora uma coisa não tenha a ver com a outra, passei a  
acompanhar a Associação para todo o lado, pendurado na generosidade de  
amigos mais velhos e com emprego. Frequentei todos os campos e estádios 
 do Norte do País e, já praticamente de bigode, até fui ao Barreiro  
arrancar à CUF um lugar nas meias-finais da Taça de Portugal que nos 
roubaram.
Quando mudei a minha vida para o Porto ainda se ia ao futebol em  
família. Quero dizer: famílias inteiras, com pai, mãe, avós e netos,  
sobrinhos, primos, namoradas e namorados. Podia-se ir, não era perigoso.
 Eu fui logo morar para o Estádio das Antas, Superior Norte, porta com  
porta com o meu tio Zé da Bomba, que já lá morava há que anos. Consegui 
 converter a minha mulher ao FC Porto, fi-la também sócia e passámos a 
ir à bola os dois, eu e ela com a cesta do merendeiro atrás, porque 
naquele tempo não havia  lugares marcados e para jogos grandes era mesmo
 preciso entrar de  véspera. E quando digo merendeiro quero dizer 
exactamente merendeiro:  frango assado, sandes de vitela ou lombo de 
porco, panados, bolinhos de  bacalhau, bacalhau frito, pataniscas, 
feijoada, salada russa, iscas de  fígado, rojões, moelas de coelho, 
arroz à valenciana, filetes de  pescada, salpicão, presunto e rebentos 
de soja, uma toalha de linho em  cima dos joelhos, uma garrafosa de 
verde tinto bem fresquinho, ou duas, e uma garrafa de litro de cerveja, 
ou duas, por causa dos descontos.  Entrava tudo. E marchava tudo. Para 
não virmos carregados para casa.  Aquilo é que era futebol!
Se o FC Porto não jogava nas Antas, então eu ia ao Mar torcer pelo  
Leixões ou ao Bessa ver o Boavista. Aos sábados puxava pelo Salgueiros  
em Vidal Pinheiro que Deus tem ou matava o vício no claustrofóbico campo
 do Infesta,  que me dava falta de ar. Às quartas, dia da minha folga do
 trabalho,  papava campeonatos de reservas, desempates da Taça de 
Portugal,  liguinhas de subida de divisão e torneios de apuramentos de 
campeões. Em Santo Tirso, em Vila do Conde, na Póvoa de Varzim, em 
Espinho, em  Aveiro, onde calhasse aqui à roda. Havia jogo, eu estava 
lá. E  regalava-me. Mas depois chegaram as claques "organizadas", como 
se diz para o crime, para a Máfia, para os ganguesteres, e eu vim-me embora.
Às vezes tenho saudades. Tenho saudades do tempo do futebol ingénuo, em 
estado quase puro, sem sad, sem ceo e sem administradores e consultores e
 assessores pornograficamente remunerados e premiados no final do ano 
ainda que não ganhem nada em campo, ainda que destruam a equipa de 
futebol e ainda que levem o clube à bancarrota. Do tempo em que os 
presidentes e os directores punham dinheiro do próprio bolso e
 ainda biscatavam graciosamente ou, como o Fernando da Sede,
 carregavam botijas de gás às costas até aos balneários para que nada 
faltasse aos seus "meninos". Do tempo em que dirigentes pagavam bifes a 
jogadores à rasca da vida. Do tempo dos espectadores, da massa 
associativa, dos adeptos, dos apaniguados, dos grupos excursionistas, 
das comissões de auxílio, dos grupos de apoio espontâneos, com bombos e 
até gigantones e cabeçudos, que não eram poucos. Era o futebol, e o 
futebol era uma festa! Por outro lado, a partir das 
claques, que são um negócio dentro do outro negócio, ser mero espectador 
transformou-se em actividade de risco elevado. Agora o futebol está de 
pernas para o ar, chama-se "o  jogo" e tem transições
 e momentos e adn e claques profissionais pagas a peso de ouro (ou  ao 
peso do que o receptador aceitar), claques armadas, drogadas e 
perigosas, talvez assassinas, ninguém é de ninguém, o Benfica  ganha há 
cinco anos e eu sinto-me perdido. Às vezes tenho saudades - mas não 
torno!
P.S. - Escrevo no Tarrenego! sobre a perniciosidade das claques no futebol desde o dia 1 de Setembro de 2012. 
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