Foto Hernâni Von Doellinger |
Há uma longa e honrosa tradição familiar no nosso lado Von Doellinger: somos umas pessoas muito doentes, que foi a única herança que o meu avô da Bomba nos deixou. A minha mãe costuma dizer que, em questão de doenças, "não damos vez uns aos outros". A minha mãe, é preciso que se note, é do lado Pereira, que lamentavelmente não me chegou ao nome, Pereira do meu avô de Basto, que nunca aceitou copo dado e levava tudo à frente na hora da pancadaria. Este meu querido avô era, pelo seu lado, um mãos-largas. Tudo o que tinha, dava. E se o que tinha à mão era o varapau de lódão, então era de esgaça-pessegueiro. A mim, deu-me o meu primeiro relógio de pulso e, numa noite de Natal, o seu próprio relógio de bolso, um magnífico e infalível Omega que há coisa de quinze anos passei ao meu filho. Fiquei-me com as memórias.
Mas o lado Bomba. As doenças. Neste campo, como em mais um ou dois, ou três, sou a ovelha negra da família. Doentemente falando, sou uma treta, uma nódoa, um ignorante, uma vergonha para a classe dos doentes em geral e da minha família em particular. Às vezes penso que devia ser expulso. Da classe e da família.
Vejam bem isto: no outro dia fui à farmácia aviar uma receita com os medicamentos do costume, remédios de manutenção que tomo há anos, e pergunta-me o farmacêutico:
- O Xpghtywçtor, como é que é a embalagem?
- Desculpe lá, mas esse é para quê? - atrapalhei-me eu, sem saber de que é que o homem estava a falar. Na verdade, era a primeira vez que me faziam perguntas destas na farmácia.
O profissional sorriu, cheio de paciência e esferográficas no bolso da bata branca, disse-me para que era o medicamento e, na posse dessa preciosa informação, eu já lhe pude explicar que era uma caixa assim e coisa e tal.
- E o Gvmkzxqumnarc? É em frasco ou...- voltou o farmacêutico à carga, e eu outra vez à nora.
- E esse é para... - pedi novamente ajuda, corado de vergonha, no meio de um estabelecimento à cunha de especialistas.
O farmacêutico parou de sorrir. E desatou a rir. Mas lá me esclareceu, e eu lá lhe respondi que sim, era em frasco.
Percebem o que eu quero dizer? Como doente, sou de uma incompetência a toda a prova. Sou muito fraquinho, uma anedota. Como é que eu posso entrar naquelas interessantes conversas de sala de espera de consultório médico, conversas de doentes como deve ser, doentes encartados, e discutir e confrontar com os meus pares colesteróis, internamentos e bicos-de-papagaio, cardiologistas, bruxas e medicamentos, se nem sei o nome dos remédios que tomo? Como é que eu posso honrar o legado do meu egrégio avô? Não posso! Não estou capacitado.
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