sábado, 28 de abril de 2018

O reality show começou em Fafe

Foto Hernâni Von Doellinger

Quando eu era mocico e a ambulância acudia a um desastre com a sirene em altos berros, as pessoas de Fafe corriam para as escadas do hospital. Ali se plantavam, esperavam, prognosticavam, diagnosticavam, e finalmente assistiam ao espectáculo. Ao vivo. Em casos mais graves e raros, assistiam também ao morto. As escadas do hospital eram um palco de desgraças e caldeirão de emoções, cenário de reality show sem que Portugal sequer soubesse o que isso viria a ser. Eram também muito jeitosas para tirar fotografias de grupo a casamentos, bombeiros em festa e bandas de música, palavra de honra. Eram, portanto, o sítio mais in da vila e só estorvavam naquilo em que deveriam melhor servir, que era carregar macas com feridos e doentes por ali acima ou por ali abaixo, às vezes de cangalhas até ao chão.
Mas o espectáculo. A ambulância saía e o povo corria. O bom do Senhor Ferreira via-se à rasca para manter na ordem aquela gente toda e tola que fazia guerra por um lugar na primeira fila, sobretudo mulheres afogueadas e gordas, com os socos e o coração nas mãos ou enrodilhados no avental arregaçado. Faço notar que não foi por distracção que escrevi "a" ambulância. O artigo definido é aqui propositado e certo, porque, naquele tempo, dará para acreditar?, os Bombeiros de Fafe tinham apenas uma ambulância, uma velha Skoda vermelha que regularmente ficava sem travões no meio das descidas. Pois, como dizia, as pessoas de Fafe corriam para as escadas do hospital e regalavam-se de braços decepados e orelhas arrancadas e narizes esborrachados e fémures a céu aberto e pés desfeitos e tripas de fora e miolos ao léu e espinhelas partidas e... - Foi tiro?, Foi facada?, Foi sachola?, Foi o home?, Foi a amante? Foi desastre?, Foi o vinho? E muitos Uis! e muitos Ais! e muitos Coitadinhos! e muitos Valha-nos Deus! Estavam ali no relambório, a dar água sem caneco e a benzer-se na direcção da Igreja Nova, mas sem perder pitada. Vampiros mirones, iam ao sangue, queriam sobretudo molhanga, muita, vermelha vermelha como a ambulância que chegava enfim, esbaforida e ganinte. Era um fartote! Uma comoção!...
Agora as pessoas não precisam de ir a correr para as escadas do hospital. Sentam-se em casa, ligam a televisão e vêem na CMTV.

P.S. - Fui a Fafe e verifiquei, com desgosto, que ainda há algumas árvores. Espero que a Câmara faça o que lhe compete: é cortá-las pela raiz, sem dó nem piedade, é queimar flores, sementes e plantas, para acabar de vez com a raça. As árvores são piores que javalis imaginários ou perdizes amestradas. E não fogem ao tiro. Viva a solução final e a Volta a Portugal! Fafe livre de árvores, já!

2 comentários:

  1. Belo texto de memórias!
    Eu também corria para as escadas do hospital para ver os desastres!Éramos a canalha que ia atrás dos adultos e estes nem se apercebiam que nós,ainda não estávamos maturadas para aquele espectáculo.
    Nunca mais esquecerei o acidente do autocarro na Lameira, nunca mais! Como tu dizes,era sangue,pernas e braços decepados...tudo o que uma criança não deve ver!

    quanto às árvores...uma tristeza!

    Obrigada, Nane
    Beijinho


    Obrigada nane, beijinho

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