"Teve uma infância estranha", disse Austin. "Em última análise, todas as infâncias o são", disse Mister DeLuxe. "Molero diz", disse Austin, "que a infância do rapaz foi particularmente estranha, condicionada por questões de ambiente que fizeram dele, simultaneamente, actor e espectador do seu próprio crescimento, lá dentro e um pouco solto, preso ao que o rodeava e desviado, como se um elástico o afastasse do corpo que transportava e, muitas vezes, o projectasse brutalmente contra a realidade desse mesmo corpo, e havia então esse cachoar violento do que era e a espuma do que poderia ser, a asa tenra batendo à chuva." "O quê?", perguntou Mister DeLuxe. "É curioso pensar", disse Austin, passando por cima da pergunta directa, "que o rapaz tirava burriés do nariz quando era pequeno, mas não os comia logo." "Hã?", fez Mister Deluxe. "Não os comia logo", acentuou Austin, "colava-os à parede para os comer no dia seguinte." Houve uma pausa. "Gostava deles secos", explicou. "É óbvio", disse Mister DeLuxe, "não estou a falar dos burriés, estou a falar das idiossincrasias de Molero." Debruçou-se sobre a secretária e virou uma folha do calendário de mesa.
"O Que Diz Molero", Dinis Machado
(Dinis Machado nasceu no dia 21 de Março de 1930. Morreu em 2008.)
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