Patas macias sobre folhas mortas. Ao atravessar num salto a janela aberta o tigre sabia muito bem que o lenhador tinha saído. O bebê de dois anos estava sentado no chão, brincando. Sozinho, sozinho. O tigre se aproximou cauteloso e quando a criança viu aquele cachorrão rajado abriu com espanto dois olhos azuis, dois lábios sorridentes, dois bracinhos. O tigre começou pelos braços. Depois devorou o resto da criança e tratou de voltar à floresta.
Suponha, agora, que esse tigre cresceu, deixou de comer criança e relembre um dia como havia devorado o filho do lenhador. Um sorriso estranho paira sobre sua cara, sorriso no qual seu orgulho tigrino só permite que se manifeste um tiquinho de remorso. O resto do sorriso é a pura lembrança da carne tenra da criança, é desprezo pelo lenhador estúpido que deixou a janela aberta - uma completa orgia de satisfação consigo mesmo.
Foi com um sorriso assim (e há sorrisos dificílimos de descrever) que o amigo do homem desaparecido se aproximou da janela do seu apartamento tendo na mão o livro que o desaparecido dedicara a ele: "Para você, meu grande amigo". O amigo olhou lá fora o mar que ia além da praia de Copacabana e que flambava ao sol do meio-dia como uma poncheira acesa. Era quase um milagre a capacidade que tinha o Rio de dar às pessoas uma sensação de bem-estar, de saúde. O desaparecido também amava o Rio.
"O Homem Cordial e Outras Histórias", Antônio Callado
(Antônio Callado nasceu no dia 26 de Janeiro de 1917. Morreu em 1997.)
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